Uma coisa boa é lavar a louça. Mas à mão. Demora, e é uma atividade que goza duma particularidade bastante importante: tem de ficar bem-feita. Principalmente aqueles tachos grandes, com aquelas camadas de piche que se agarram ao chão das panelas como bocados de pneu em alcatrão. Aqueles refogados residentes. Tem de se raspar bem, com paciência. Enquanto vou empilhando pratos, testos, frigideiras e taças imaculadamente limpos naquele dispositivo doméstico cuja função é escorrer o excesso de água e cuja designação vulgar eu desconheço, o Ricardo Reis sussurra-me ao cachaço o seu mantra mais precioso, com a força de um evangelho da maior importância: “Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes.” Esse estribilho leva-me o pensamento, liberto que está pela clausura da mente a tão sagrada tarefa doméstica, a um relato que algures li sobre um templo budista. Cada noviço que por lá chegava, aspirando os insondáveis e altos mistérios do nirvana por sob qualquer sagrada figueira, era imediatamente relegado para essa mesmíssima e ordinária tarefa: a de lavar a louça à mão. Ao fim de alguns dias, de algumas semanas, de alguns meses, era normal que algum noviço viesse reclamar por mais etéreas e dignas funções. E o monge mandava-o de requitó de volta para a banca da louça suja. Só quando o noviço interiorizasse por completo a sacralidade dessa tarefa divina, e portanto a assumisse com a humildade que o levaria a parar de reclamar, é que se consideraria apto a ocupar um posto de superior patente, na hierarquia zen, de quaisquer que sejam as tarefas dum templo budista. Sujar para depois lavar, num ciclo sem fim. De nada adianta precipitar a empreitada, tentar fazer rapidamente, atalhar caminho, fazer mais ou menos, tentar pela direita ou pela esquerda. Tem de ficar bem-feito. E a gosma do bacalhau à Brás tem garras que se cravam como garras de ave de rapina ao fundo de um tacho que se apresentava como antiaderente. É uma batalha que será ganha a cada centímetro quadrado. Não se pode nem se deve olhar para o fundo do tacho como um todo, senão a mão que maneia a palha-d’aço poderá desmoralizar. Tem de ficar bem-feito. “Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes.” OK, Ricardo, já sei. É uma tarefa divina. Agora, senhor Monge, será que não deixava esta panela a marinar em água quente e detergente e ia um bocadinho meditar para a varanda? Por favor, só desta vez.
(Opinião publicada na VISÃO 1412 de 26 de março)