Eu olho com comoção para as movimentações inevitáveis deste mundo. Muito recentemente veio à baila um famigerado incêndio nos estúdios da Universal, em 2008, onde pelos vistos arderam os masters originais de obras dos mais importantes artistas da era moderna. Ray Charles, B.B. King, The Four Tops, Joan Baez, Neil Diamond, Sonny & Cher, Joni Mitchell, Cat Stevens, Gladys Knight and the Pips, Al Green, Elton John, Eric Clapton, Jimmy Buffett, Eagles, Aerosmith, Rufus & Chaka Khan, Barry White, Patti LaBelle, Tom Petty and The Heartbreakers, The Police, Sting, Steve Earle, R.E.M., Janet Jackson, Guns N’ Roses, Mary J. Blige, No Doubt, Nine Inch Nails, Snoop Dogg, Nirvana, Beck, Sheryl Crow, Tupac Shakur, Eminem, 50 Cent, The Roots. Tudo reduzido a cinza. Tudo pó. Os masters originais, a cifra primordial, o registo primeiro, direto e imediato, aquilo que brota da alma do criador para o mais fiável registo da época, a fita de gravação. Claro que a obra ainda circula. Em versões digitais, em cópias, em cópias de cópias, em streams, em cassetes, compact discs, discos em vinil, mp3, wavs. Olho para isto com comovida resignação. Porque também estas cópias de cópias ao pó tornarão, todos os registos, todas as memórias. Todas as memórias concretas, tudo ao pó tornará. Porque é assim com tudo, mesmo com as obras que nos são mais caras, aparentemente definitivas, aparentemente perenes, aparentemente imortais. Vem um incêndio e pronto, fica já resolvido. Um dia, um importantíssimo artista do nosso país, um pianista que já gravou pelo mundo todo, que atuou por todo o planeta, confidenciou-me nos bastidores de um programa de televisão que essa perecibilidade de tudo o angustiava de morte. Saber que todo o trabalho, todo o estudo, as horas infindáveis, o vislumbre de alguma beleza por vezes quase atingido, a entrega total e irreversível da alma a este labor, tudo passará um dia. 100 anos, 1 000 anos, pouco, tudo muito breve. Essa ideia, esta inevitabilidade, pesava a esta alma inquieta com todo o peso da morte. Na altura, não soube conversar à altura. Não soube explicar a razão de não só não me sentir angustiado por essas coisas como até sentir alguma comoção reconfortante nessa brevidade de tudo. As obras têm o seu tempo, e é o efeito relativo, o eco, a incidência de luz dessas obras nos outros que interessa, que fica, que permanece. É nesse impacto que reside a vitamina e tudo o resto é lenha para arder. É esse efeito invisível que jamais passará, porque é feito da matéria do infinito, do absoluto. Esse efeito há de propagar-se e gerar outras ideias, outras obras, e assim se vai construindo aquilo que as religiões de Abraão chamam de “Reino”. Mais nada interessa e é sempre maravilhoso assistir à reciclagem bondosa, generosa e reparadora da Natureza.
(Crónica publicada na VISÃO 1410 de 12 de março)