Quando vejo o cor-de-rosa parece que se referem a mim. A mui tatuável frase de Almada Negreiros numa das páginas d’A Invenção do Dia Claro ecoou no meu âmago para lhe dar sentido. Descreveu uma dimensão importante da minha existência e verbalizou um sentido de identificação que sequer havia realizado em consciência. Tocaram os sinos. Acendeu-se a lâmpada. É mesmo isso: quando vejo o cor-de-rosa parece que se referem a mim!
Cresci nos anos oitenta e tudo o que eu mais queria era um vestido de folhos de tule cor-de-rosa, umas leggings de licra cor-de-rosa, uma pochete-concha cor-de-rosa, uma tiara com brilhantes cor-de-rosa, unhas cor-de-rosa e umas sabrinas prateadas. Queria viver no mundo cor-de-rosa chiclete do Pequeno Pónei. Ter o cabelo platinado da Barbie, preso numa palmeirinha no topo da cabeça e usar batom com cheiro a Sugus de morango.
Em vez disso, a minha mãe fazia camisolas de tricôt e vestidos de bombazina com os moldes da revista francesa 100 Idées e calçava-me com botas de couro duro para que não crescesse com as pernas tortas. Ela tinha muito bom gosto e as minhas pernas estão impecáveis, mas aquele look festa-do-Avante foi sempre um duro golpe para as minhas pretensões de pirosice. O resultado foi uma natureza contida, uma alma contrariada que, da adolescência aos dias de hoje, tem laivos de liberdade, tentando cumprir-se, ora em doses homeopáticas, ora em rosa-choque descontrolado.
Do ponto de vista criativo, o cor-de-rosa também me tem servido de muito. Primeiro porque da frase de Almada retiro o cor-de-rosa enquanto otimismo militante. Esse romantismo cândido de quem acha que vale sempre a pena. De quem ainda não tem calo, porque se recusa a ter. Mais concretamente naquilo que costumo descrever como a “Guerrilha Cor-de-Rosa”, ou seja, essa luta por preservar a autoestima, a espontaneidade e a atitude positiva, contra tudo e contra todos. E que, sendo cor-de-rosa, não deixa de ser uma guerrilha. E segundo, porque o cor-de-rosa é um ótimo gatilho para a escrita, tendo resultado, por exemplo, na letra A Cor da Rosa, que fiz a propósito do Mão Verde, disco para crianças e em que pergunto: se há rosas de tantas cores diferentes porque é que chamamos cor-de-rosa ao cor-de-rosa? É que afinal, o vermelho também é cor de rosa. E o amarelo também…
Mais recentemente, no pós-parto, dei por mim a comprar coisas cor-de-rosa umas a seguir às outras. Depois de meses de gravidez em que os camisolões e os leggings pretos eram a farda nossa de cada dia, comecei a sentir que não era apropriado manter essa sobriedade tendo um bebé no colo. Parecia que estava de luto, o que era especialmente sinistro naquele momento de tanta gratidão. Inconscientemente, o cor-de-rosa impôs-se…Uma mochila para as coisas do bebé – rosa-velho. Uns óculos escuros – cor-de-rosa-claro. Um casaco de malha – cor-de-rosa e vermelho. Umas calças de ganga – magenta. Dei por mim uma pirosa completa. Toda artilhada nos meus cinquenta tons de Barbie, naqueles primeiros e intensos meses de puerpério e até ao momento em que vos escrevo.
Sem pudor e sem reservas, cumprindo minha natureza. Fosse o meu bebé uma menina, seria Rosa. E nesta minha espécie de crise de identidade da matrescência, nesta minha carência de ócio e vadiagem, nesta senda pelo êxtase e pelas emoções fortes (dentro da condição que a logística permite), decidi pintar o cabelo de cor-de-rosa. Podia ter ido beber gin até ficar tocada, acreditem que até ficava mais barato. Mas estou a amamentar e o cor-de-rosa, além de durar mais uns dias que os vapores da destilaria no espírito, diz mais sobre mim do que qualquer sinceridade etílica. Sei que parece rebeldia de quem joga monopólio quase até à meia-noite, mas é o possível, caros leitores, e com um batonzinho groselha até que me favorece.
(Opinião publicada na VISÃO 1409 de 5 de março)