A ideia (qualquer ideia) para que se torne palpável, para que se torne substância, para que seja moeda em circulação, tem sempre de ceder nas inflexíveis negociações da vida real. A ideia, qualquer ideia, terá de se deixar agredir pela concessão, terá forçosamente de se permitir existir através de um conjunto de elementos mundanos que lhe retiram muito do brilho essencial.
As ideias são sempre melhores na ideia do que na sua concretização, e é nesse negócio permanente de cedências e concessões que aquele que se oferece para lhes dar vida terá de viver na permanente angústia de sentir que a alternativa de as manter cativas na inexistência representa uma tragédia ainda maior do que a obrigação que sente de a vazar, mesmo assim, apesar de assim. O policiamento da concretização da ideia, para que não se afaste demasiado de si própria, a vigilância inflexível, o recolher do fio de pesca, o retroceder até à ideia primitiva, as negociações, os bateres de pé, o esmero, o zelo, são quase sempre traços de uma natureza oposta àquela natureza circunspecta, contemplativa, mole, da pessoa que tem as ideias.
As ideias aparecem quando o cérebro está meio dormente, em estado de gelatina, com as defesas em baixo, com os alarmes desligados, enquanto os cães dos portões dormem a sesta. Não é a cabeça que tem as ideias, são as ideias que têm a cabeça.
Eis a grande tragédia da minha vida criativa: oscilar entre um estado em que as ideias tomam conta de mim para um estado em que tenho de ser eu a tomar conta delas. O ter de me forçar a uma natureza que agride, em todos os aspetos, aquela que é a forma mais primitiva e essencial da minha. O ter de pastorear o processo com olho de lince, faro de pastor-alemão, mão de sargento, coisas que não tenho. O ter de ser inflexível, coisa que não sou. O ter de ser atento, meticuloso, bom negociante. Mas não há alternativa.
Permitir que as ideias existam apenas enquanto tal, no éter das coisas que seriam, que poderiam ser um dia, que serão um dia, quando e se isto ou aquilo, quando houver orçamento, quando a legislação assim ou assado, quando a maré virar, representam em mim, para mim, um pecado ainda maior do que dar-lhes seguimento frágil e por conseguir, do que me oferecer todo eu, inteiro e íntegro, para lhes dar uma vida possível, para as condenar a uma existência palpável, para as tornar moeda em circulação, necessariamente aquém do que seria se…
Uma ideia concretizada é, já de si, uma ideia impossível. Talvez noutro mundo, não neste. Porque na formação da ideia, as mãos no barro serão sempre as nossas próprias. E isso deforma sempre qualquer ideia, porque a imagem final da coisa feita terá sempre a forma das nossas mãos. E nada deforma mais do que as nossas próprias mãos. E elas são tudo o que temos para desbravar todo o caminho, entre murros e afagos, entre a perversão e a preservação. Pelo menos, é essa a ideia que eu tenho.
(Crónica publicada na VISÃO 1400 de 2 de janeiro)