Cem crónicas! Cem páginas em branco que preenchi com as minhas visões sobre o mundo. Um inesperado convite da VISÃO e ganhei a responsabilidade de dizer coisas. A responsabilidade de encontrar temas sobre os quais escrever cerca de três mil e quinhentos caracteres de quinze em quinze dias. A responsabilidade tantas vezes angustiante de quem ainda não os encontrou. Mas o entusiasmo de quem passou a ter um olhar mais atento sobre tudo. O mundo e o mundo interior. A realidade e o sonho. O quotidiano e a exceção. Porque, mais cedo ou mais tarde, chegará o email da Sofia, lembrando que há uma crónica por entregar.
Nestas cem quinzenas, decidi variar o mais possível. Achei sempre que ninguém ia querer ler uma coluna confessional, sobre o meu umbigo, revista após revista. E, a bem da verdade, também nunca quis expor-me mais do que o inevitável. Embora tenha achado, igualmente, que não faria sentido ficar presa à atualidade. Pois se quisessem uma comentadora da espuma dos dias, por certo que não me convidariam a mim.
Assim sendo, decidi ir alternando temas mais culturais (porque afinal sou uma trabalhadora do setor) com a clássica filosofia da vida quotidiana (tema de crónica por excelência), algum comentário político genérico (não fosse eu viciada em programas do género) e coisas mais existenciais e poéticas. Escrevi sobre filmes e concertos, sobre os meus gostos e as minhas histórias, sobre feminismo, gentrificação, a Bélgica e o Brasil, sobre ecologia, balões de São João e gelados italianos. Escrevi sobre o hip-hop, sobre viagens, sobre a minha (e a nossa) relação com o mar, sobre o Porto, sobre os filhos dos meus amigos e os amigos dos meus pais, sobre as minhas letras e sobre a minha preguiça de ir ao ginásio. Escrevi sobre Caetano, Gil, Zeca, Elza e sobre a Jane Fonda. Escrevi sobre palavras, sotaques, expressões e citações. E ultimamente escrevi muito sobre maternidade.
Eventualmente, como é inevitável, escrevi sobre a ausência de inspiração. Mas quase sempre consegui cumprir o exercício, e devo dizer que ter de escrever periodicamente, um determinado número de carateres sobre um tema livre, tem-se revelado uma ótima forma de praticar o músculo criativo. Principalmente para quem estava mais habituado a escrever em rima. É que isto de explorar registos e géneros novos exige sempre algum poder de adaptação.
Reparei também que se, por um lado, a minha prosa é bastante marcada pelos meus “vícios” de rapper (as repetições, os jogos de palavras, as aliterações e a tendência para gerir os impactos do texto com punchlines), as minhas canções têm beneficiado muito deste compromisso com as crónicas. No meu disco novo (que terminei esta semana), muitos dos temas derivam diretamente dos textos que escrevi aqui, num contágio criativo que fez migrar frases e que fez refletir (como um espelho) alguns assuntos, da prosa para a letra.
Outra coisa boa é sentir que esta página me faz chegar a pessoas que não são necessariamente público habitual da minha música. Além do privilégio de receber críticas, nas redes sociais e na rua, sobre uma ou outra crónica. Sendo que, a julgar pelas mensagens e os elogios, na lista das favoritas está a que escrevi sobre os meus avós, a que fala sobre as árvores da minha vida, a minha crítica à precariedade nas universidades e nos centros de investigação e todas as que estão relacionadas com a maternidade (o parto, a solidão e o cansaço dos primeiros meses, a importância da rede de apoio e a amamentação).
Por esse feedback positivo, agradeço muito. Pela oportunidade de escrever, também (e para sempre). E em dia de celebrar a centésima crónica, peço a Nossa Senhora das Páginas em Branco que me ajude a ter temas novos e pertinentes, sempre que o email da Sofia me relembre que há uma crónica por entregar.
(Crónica publicada na VISÃO 1393 de 14 de novembro)