Os homens da minha geração não foram talhados para aqueles ofícios que, tradicionalmente, se associam aos homens. Eu sou capaz de mudar uma fralda, sinto-me apto a fazer um bom refogado, mas sou incapaz de subir a um telhado, rachar lenha ou esfolar um alce, aquelas coisas que os homens faziam mais ou menos desde o primeiro primata que desceu do primeiro galho até ao meu pai. Safei-me por pouco. Mil vezes espetar uma faca numa courgette do que na jugular dum coelho. Bendita desmasculinização da civilização ocidental. É por isso que volta e meia é preciso chamar um homem cá a casa. Nestas bolandas da vida, de vez em quando as tarefas pedem trabalho braçal, duma natureza viril que se foi desnaturando em mim. Na semana passada chovia na cozinha e andaram homens pelo telhado. E viram que a chaminé estava torta. Milagre, bendita chuva fora de época que permitiu atentar numa tragédia a pedir para acontecer. Uma eminente torre de Pisa, um iminente perigo urbano. Como é que se resolve isso duma chaminé prestes a cair? Cá de baixo não se via, se não eram os homens no telhado a chaminé acabaria por cair, acarretando danos incalculáveis, perigo de vida, coisas que nem é bom de pensar. A solução foi confiar nas instituições, coisa a que a opinião pública nos desincentiva a cada telejornal. Ligámos para o Batalhão de Sapadores Bombeiros do Porto. E veio um camião, apareceram oito bombeiros. O subchefe Couto Ribeiro subiu para o telhado. A Polícia Municipal fechou o trânsito. Passam por aqui muitos carros, muita gente, uma manhã toda com a rua cortada gera aqui por estas bandas um embaraço significativo. A questão da chaminé torta gerou um acontecimento épico. As pessoas foram compreensivas. O senhor da mercearia veio para a rua assistir ao espetáculo. O senhor Almeida, que fornece hortícolas aos habitantes da minha zona na sua carroça puxada por um cavalo que a população lhe ofereceu quando o anterior, o Santarém, disse adeus a este mundo, apeou e ajudou a orientar o trânsito. Nós todos, cidadãos embasbacados, assistimos cá de baixo, indicador em riste a apontar para a épica ocorrência e a outra mão a fazer de pala de boné. Foi uma coisa maravilhosa de ver, pese embora o perigo. Orgulhei-me de ser um bicho social. De sermos esta teia de gente que se organiza, que se junta, que se ajuda, que se entende. De sermos este animal que se foi organizando, que criou as instituições, a polícia, os bombeiros, o sr. Almeida e o seu corcel. De ser possível arrancar uma chaminé de um telhado com umas abraçadeiras gigantes, um gancho na ponta dum braço amestrado que sai dum camião e a coordenação de um herói, o subchefe Couto Ribeiro, a arriscar tudo em cima dum telhado. As pessoas bateram palmas. Mas geralmente, não batem palmas. Batem, apenas. Dizemos mal dos bombeiros, dos polícias. O subchefe Couto Ribeiro disse-me que não se importa de um dia morrer numa destas. Isso mesmo: dar a vida numa aventura destas. Ele disse-me, com sinceridade, que o que lhe interessava era a segurança das pessoas, enquanto eu lhe tentava agradecer sem jeito. Ele disse-me que quando entrou para os sapadores sabia que provavelmente um dia destes iria desta para melhor numa façanha assim. Ainda nessa manhã tinha andado nos telhados do Foco. Quem é do Porto sabe o que é o Foco. Sabe a altura daquilo. Já estava no ativo há mais de 24 horas. Confidenciou-me que a única mágoa que tinha (tem, têm) é a falta de reconhecimento da população. Falta de respeito, até. De todos os emails que o comandante dos Sapadores do Porto recebe, a maioria são queixas. O subchefe Couto Ribeiro andou no mesmo liceu que eu. Mora numa rua abaixo da minha. Agradeceu o meu agradecimento atabalhoado, tirou uma fotografia com a minha filha bebé (pôs-lhe o capacete na cabeça), disse-me que, para ele, o que lhe bastava era ver a minha família em segurança. Pediu se podia entrar para lavar as mãos. Depois foram almoçar, estavam cansados e ainda havia serviços para a tarde.
O subchefe Couto Ribeiro
Marcos Borga
Mil vezes espetar uma faca numa courgette do que na jugular dum coelho. Bendita desmasculinização da civilização ocidental. É por isso que volta e meia é preciso chamar um homem cá a casa
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