A diretora de uma escola na Flórida foi forçada a demitir-se por ter mostrado a imagem da estátua de David, de Michelangelo, numa aula sobre arte renascentista aos alunos do sexto ano. Hope Carrasquilla está acusada por um pai de revelar “pornografia” às crianças e a escola cedeu à pressão. Nenhum paralelo com o caso dos pais de Famalicão que proíbem os filhos de ir às aulas de Cidadania é coincidência: o ultramontanismo anda à solta. De Famalicão a Tallahassee, há quem esteja convencido de que cada indivíduo tem o direito a escolher, à la carte, aquilo que vê, lê e ouve em seu redor. Para si e para os seus filhos, como se fossem propriedade sua. Há quem acredite ter direito a não ser incomodado ou ofendido na sua fé, seja ela qual for, e poder para o impor. Ora, se o ultraconservadorismo é um fenómeno global e tem os seus líderes, a culpa também é dos ultratolerantes que aceitam o atropelo do bom senso, para evitar problemas. Pelo sim, pelo não, agasalha-te, David. Não queremos arreliar ninguém.
Hope Carrasquilla recebeu um ultimato do conselho de administração da escola: ou saía pelo próprio pé ou despediam-na. A pressão, que é habitualmente um fenómeno atmosférico, não nasce do ar neste caso. O Estado da Flórida é governado por Ron DeSantis, rosto da ultradireita que sobe como a alternativa do partido republicano a Donald Trump nas próximas eleições presidenciais. Como governador, tem lutado para proibir a educação sexual nas escolas, cavalgando contra aquilo a que a extrema-direita chama “ideologia de género”. A sua cruzada pelos “direitos dos pais” pretende dar aos encarregados de educação poder de veto sobre o que os alunos aprendem nas aulas. O conselho de administração da escola Tallahasse Classical parece estar alinhado com essa visão e tem como protocolo notificar os pais quando os conteúdos abordados em aula são “potencialmente controversos”. Aparentemente, a nudez desta estátua do séc. XVI é incluída neste conceito.
Quando aqui escrevi sobre o caso dos pais de Famalicão, espantou-me a brandura do debate. Afinal, falamos de pais que pretendem retirar aos filhos o direito à educação pública, dentro da escola pública. Não me parece aceitável que se queira pôr em cheque o futuro escolar de crianças, e a sua formação como cidadãos, em nome de uma deriva ideológica dos progenitores. Infelizmente, parece haver tolerância face à ideia. A defesa do suposto direito dos pais à objeção de consciência para impedir que os filhos frequentem a disciplina de Educação para a Cidadania motivou um abaixo-assinado de 100 personalidades, entre os quais se destacam D. Manuel Clemente, Pedro Passos Coelho e Cavaco Silva. Cavaco Silva, o mesmo que Carlos Moedas invocou na semana passada pelo seu “legado de humanismo”. DeSantis assinaria provavelmente este abaixo-assinado.
Parece haver consenso em torno da ideia de que existe uma nova onda de puritanismo. O consenso acaba na substância, no entanto: geralmente, quem fala em puritanismo quando se derrubam estátuas de antepassados esclavagistas não fala em puritanismo quando se quer vestir a estátua de David. E vice-versa. Atenção: não caio no discurso que iguala as ditas barricadas. Não é igual propor a revisão de um texto discriminatório, que levanta questões à luz dos Direitos Humanos, ou retirar do ar uma novela porque narra um romance entre dois homossexuais. Os Estados democráticos têm um compromisso com os Direitos Humanos e não com a fé de cada um. Há, contudo, uma linha comum entre a pulsão de quem propõe rasurar os livros de Enid Blyton e a de quem propõe vestir David em nome dos bons costumes: um impulso para esconder a realidade. Um medo de que a ameaça se alastre caso não seja oculta. Não trago respostas agudas para um debate complexo – e quase sempre desviado pelo fervor ideológico -, mas um convite à reflexão.
Pessoalmente, pendo sempre para a importância da mediação: não demolir a estátua, mas enquadrá-la e debatê-la. Abolir ou reescrever um livro é – não interessa o quão justas são as causas que o motivam – deitar fora uma das mais importantes funções sociais da arte: o debate. É desistir da noção do contexto. Simultaneamente, quem julga ter direito a proibir os filhos de ter uma aula sobre Cidadania, ou arte renascentista, devia perceber que o seu papel na educação dos filhos é o de mediador da realidade. Por muito bizarro que seja, se assim entender, pode explicar aos seus filhos que aquela estátua é má, de mau gosto, que o corpo humano é diferente daquilo, que David nem sequer era assim, tinha o cabelo liso, que Michelangelo nunca foi mais que uma tartaruga ninja.
Abolir, proibir e censurar é que não.
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