O pacote “Mais Habitação” completa uma semana de consulta pública. Tem sido animada, a dita consulta. O documento com as propostas do Governo para combater a crise na habitação exaltou ânimos à esquerda e à direita. Seria, assim, de esperar que o debate público convidasse a olhar à esquerda e à direita, como quem atravessa a estrada. Curiosamente, num país onde milhões de pessoas não ganham o suficiente para se abrigar do frio, onde os jovens saem de casa dos pais já com cabelos brancos, onde mães são deixadas na rua com filhos nos braços, estamos há uma semana a debater o direito absoluto de um número residual de proprietários a manter as suas casas vazias.
Considero que o pacote “Mais Habitação” inclui propostas positivas e propostas inúteis, mas deixo a análise para a próxima. Aqui, fascina-me a reação epidérmica às duas medidas que acabaram por dominar o debate sobre o pacote: a suspensão de novas licenças para alojamento local (fora do contexto rural) e o arrendamento obrigatório de casas devolutas. Num país onde a crise na habitação é uma catástrofe social, onde o direito à habitação digna é uma miragem para milhões, é espantoso que o debate sobre a intervenção do Estado num mercado selvagem decorra sob o ponto de vista do senhorio. Invoca-se o fantasma do PREC perante medidas de regulação já aplicadas na Holanda, na Dinamarca e numa série de países insuspeitos de esquerdismo.
Julgo saber a origem do enviesamento. Odeio chegar à conclusão, mas é flagrante: boa parte dos opinion makers fala de uma crise que desconhece. A avaliar pelos argumentos expostos nos painéis de comentário, vários dos mais sonantes líderes de opinião não vivem, não sentem – nem fazem o suficiente para conhecer – os problemas enfrentados pelos portugueses comuns nesta crise. Uma pivô quis levantar uma questão “que os portugueses se colocam neste momento” e perguntou à ministra da Habitação o que seria de alguém que comprasse uma casa para oferecer à filha e a quisesse deixar vazia um ano, ou dois, até que a filha decidisse regressar do estrangeiro. Noutro programa de televisão, um comentador alegou não ser possível mobilizar as casas de alojamento local para arrendamento tradicional, porque são demasiado pequenas. Ouvimos, em horário nobre, alguém afirmar que os jovens não querem viver nas zonas de alojamento local, como o Castelo de S. Jorge, porque não há garagens ou estacionamento para o carro. Estas e outras declarações ficam gravadas em talha dourada num pitoresco monumento à falta de noção.
O tom do debate na esfera política bateu recordes. Luís Montenegro chamou comunista a António Costa. Rui Moreira invocou uma “pulsão bolivariana” do Governo. Cotrim de Figueiredo comparou o arrendamento obrigatório das casas devolutas à expropriação, pelo Estado, de carros e roupas inutilizadas dos cidadãos. Note-se: sou da opinião de que o arrendamento obrigatório de casas devolutas é, assim como está, uma medida inútil e impraticável. Não dará em nada e, portanto, deve cair. Penso que o Estado deve dar o exemplo, mobilizando os imóveis que detém para o mercado de habitação. É, no entanto, ridículo rasgar as vestes aqui, em defesa do direito à propriedade privada. A definição de casa devoluta está na lei. No número irrisório de casos aos quais se aplicaria, a proposta dita oferecer ao dono do imóvel um acordo de arrendamento com a mediação do Estado, entregando-lhe o benefício integral do aluguer, sem pôr em causa a propriedade. Está tudo no famigerado Power Point.
Como pode uma questão aplicada a meia dúzia de casos dominar o debate sobre a intervenção do Estado numa crise que afeta milhões? Há tempo, uma amiga brasileira ressaltava a ironia de ver brasileiros de classe média-baixa a gritar contra a taxação das grandes fortunas no Brasil. Em Portugal, temos pessoas que passam frio, passam fome, mas saem em defesa do tal cidadão que compra a casa para a filha, manda afagar os mosaicos, ergue uma fonte com anjinhos em mármore rosa e deixa a casa vazia, durante os anos que forem precisos até que a Rapunzel regresse. Quando o jornalismo e o comentariado não fazem o trabalho de casa, não informam nem escrutinam, é natural que aconteça.
Combater esta crise terá de passar por travar a especulação imobiliária, incentivar a oferta a preços acessíveis e investir na oferta pública de habitação. Em Portugal, apenas 2% da habitação é pública. Nas cidades “bolivarianas” como Viena, Paris ou Amesterdão, chega a representar 40%. Precisamos com urgência de um debate sério e informado sobre o combate à crise da habitação. Até lá, pelo sim, pelo não, recomenda-se aos mais fervorosos defensores da propriedade privada que se perfilem à porta das suas casas vazias nos centros das cidades, ladeados por cães de guarda, não vá dar-se o caso de surgir o funcionário do Komintern. Proprietários de todos os países, uni-vos!
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