A espuma das ondas impõe-se à espuma dos dias: agosto é assim. Na Europa – realidade da qual falamos sempre como se não fizéssemos parte dela -, os Estados com menos quilómetros de costa exportam temporariamente os cidadãos para o sol da Caparica. (Não confundir com o festival). Na Finlândia, as 29 belas praias de Helsínquia não chegam para submergir o mais recente escândalo da política nacional: os vídeos da primeira-ministra Sanna Marin a divertir-se numa festa.
Uma série de imagens espalhadas nas redes sociais esta semana mostram a líder do governo finlandês a dançar e a cantar numa festa com amigos. Polémica. De acordo com a própria, os vídeos foram gravados há semanas numa casa privada. Não se sabe como vieram a público. Face a uma onda de vozes críticas que questionam a sua legitimidade política, a primeira-ministra justificou-se na quinta-feira: “não tenho nada a esconder. Dancei, cantei e celebrei – tudo coisas legais”. Acusada de estar sob o efeito de drogas nos vídeos, foi pressionada pela oposição a realizar um teste de despiste. Cedeu. Os resultados virão nos próximos dias.
É inacreditável que, em 2022, persista a mentalidade de que uma governante não se pode divertir. Aparentemente, nem o “país mais feliz do mundo” se escapa ao bafio do moralismo conservador: uns criticam porque uma primeira-ministra (com a agravante de ser mulher) não se comporta assim; outros porque, ao comportar-se assim, perde a credibilidade. Como pode alguém perder a credibilidade por ser normal? Não devíamos, pelo contrário, gostar de saber que o poder está entregue a seres humanos com vida própria?
Vivemos um momento histórico com muito de paradoxal: se frequentemente vemos o poder acusado de andar distante das populações – não o questiono -, a sociedade parece não estar pronta para aceitar a ideia de que os líderes são pessoas normais, com vidas normais. Neste caso, que bebem um copo e se divertem nos tempos livres. Os aproveitadores rasteiros usam-no no confronto político. Veja-se: em Portugal, os mesmos oportunistas que cavalgam a ideia de que os políticos estão longe dos “problemas reais” das pessoas são os primeiros a criticar comportamentos naturais, e até desejáveis, como festejar ou ir de férias.
Estando absolutamente solidário com Sanna Marin, pelo modo como a tentam desacreditar num golpe rastejante, estou convicto de que é um erro submeter-se ao teste de despiste. Compreende-se o ímpeto de querer encerrar o assunto, dissipar suspeitas, mas é um erro prestar contas da sua vida pessoal. Fazê-lo abre um precedente perigoso e insustentável, confunde a desejada transparência da vida pública com a devassa da vida privada e alimenta a lógica populista de que os eleitores têm direitos especiais sobre a intimidade de quem governa. Obrigar uma primeira-ministra a realizar um teste médico para provar uma acusação infundada, à la Twitter, não tem nada com o essencial escrutínio da atividade política, com a crítica audaz, com a ética democrática ou o rigor deontológico. É, pelo contrário, a submissão das mais altas esferas do Estado à intriga mesquinha. Não é aceitável: cabe aos detentores dos cargos públicos defenderem a Democracia da baixaria oportunista.
Sendo comum ouvir-se, a ideia de que alguém “não tem nada a esconder” é, além do mais, estranha e perversa. É saudável guardarmos momentos para nós – não porque são ilícitos, imorais, ou sequer incomuns -, mas porque a privacidade é um direito humano básico e um pilar importante da saúde mental. Notoriamente há mais quem cite Orwell, por tudo e por nada, do que quem compreenda o valor da privacidade. Por muito que as redes sociais, os telemóveis e a indústria dos dados tenham levado uma boa parte dessa noção no tempo recente – eu já cresci nessa nova realidade -, é fundamental não abrirmos mão da esfera do íntimo. Ninguém quer viver nesse mundo. E o poder deve compreender isto a tempo, por muito que lhe seja conveniente ceder às pressões.
Acredito que a maior parte de nós pensa assim. No meu caso, confesso que a única sensação que tive ao ver os vídeos da primeira-ministra foi pena de não estar também a cantar e a dançar com os meus amigos. Por norma, é bastante saudável.
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