Esta semana, um passageiro sem qualquer experiência de pilotagem conseguiu aterrar um avião no maior aeroporto da Flórida, com o piloto desfalecido a seu lado. No registo áudio divulgado pelo Live Air Traffic, conseguimos ouvir o passageiro a dizer à central de controlo “estou aqui numa situação séria. O meu piloto está incapacitado e eu não faço ideia de como pilotar um avião”. Por favor, pense nisto antes de voltar a dizer que está perante uma situação séria.
Habemus herói. A primeira resposta que obteve ao pedir ajuda pelo rádio foi “Qual é a sua localização?”. Mas o passageiro, no instante piloto, também não fazia ideia. “Consigo ver a costa da Flórida”. Maravilhoso. Robert Morgan, o controlador de tráfego aéreo que recebeu a comunicação, decidiu dar-lhe instruções sobre como aterrar o avião – nunca tendo, também ele próprio, pilotado uma aeronave daquele modelo. Em tempo real, procurou uma imagem do painel de instrumentos do Cessna 208 e improvisou uma lição de voo, encaminhando-o até ao aeroporto internacional de Palm Beach – o local próximo com a pista mais larga possível.
Há uma ideia famosa, simplificação de uma discussão teológica, que afirma: “somos todos ateus até que o avião começa a cair”. Sendo básica à partida, a frase tem a particularidade de poder servir de argumento, tanto a crentes, como a ateus. Para os crentes, é uma tirada sarcástica que impõe limites ao espírito ateísta, como quem diz “são muito terra-a-terra, mas chamam por Deus quando o medo aperta”. Para os ateus, a ideia cola à crença em Deus o caráter de um recurso irracional perante o pânico e o desespero.
Neste caso, sabemos que o sangue frio salvou o dia. De acordo com o controlador aéreo, o passageiro “estava muito calmo”. Ouvindo os áudios, não restam dúvidas. Das duas, uma: ou estamos perante um ateu férreo, certo de que só ele se pode ajudar a si mesmo, ou perante um crente inabalável, certo de que ainda não chegou a sua hora. Como o cavaleiro de Bergman, o passageiro de Morgan enganou a morte.
Ajudar alguém, dando-lhe instruções remotamente, pode ser desafiante. Mesmo quem não trabalha num call center já teve de prestar auxílio a uma mãe às aranhas com o smartphone, ou a um avô quase náufrago no Google. É coisa que pode ser muito exigente. Somos, aliás, todos ateus até que a pessoa do outro lado do telefone não percebe as instruções à terceira. Da próxima vez que estiver perto de bradar aos céus porque o interlocutor não está a apanhar as indicações, lembre-se desta aterragem. Valeu a pena o esforço.
Já com os pés na terra, o passageiro não ficou para os aplausos. Seguiu a correr para casa, onde a mulher, grávida, o esperava.
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