Esta semana, Portugal viveu dois grandes momentos de alívio: o levantamento dos certificados covid obrigatórios e a aprovação no Parlamento Europeu do novo plano de luta contra o cancro. Se o primeiro alívio dispensa explicações – antes se celebre! -, a razão para o segundo é menos óbvia.
Aprovado na quinta-feira, o novo programa europeu contra o cancro trouxe desafogo aos produtores portugueses de vinho. Porquê? Porque afinal não passará a ser obrigatório incluir avisos alarmistas sobre os riscos do álcool nos rótulos das bebidas. Esteve quase. Por agora, podemos recuperar as horas de sono que perdemos nos últimos dias. Isso, claro, e brindar aos nossos belos rótulos.
O “Europe’s Beating Cancer Plan” é um programa de quatro mil milhões de euros para prevenir, diagnosticar e tratar o cancro na União. Aprovado com maioria esmagadora, promete ser um avanço importante na política europeia para a saúde. Além disso, é a prova de que até o projeto mais consensual na génese pode levantar farpas no detalhe.
Os produtores e amantes de vinho receberam mal a ideia de incluir avisos obrigatórios nas garrafas – ao estilo do que acontece nos maços de tabaco. Seria, de facto, terrível. A contestação encontrou especial fervor entre os aficionados de vinho do sul da Europa. Previsível? Talvez. Damos, com isto, certa razão ao ex-ministro holandês Dijsselbloem, que acusou os povos do Sul de estoirar o PIB em “copos e mulheres”. É certo que defendemos pouco as mulheres, mas nos rótulos da nossa pinga ninguém mexe.
A contestação justifica-se. O consumo excessivo de álcool é um problema sério, mitigá-lo passará por uma ação ampla e coordenada. Há, no entanto, dúvidas de que transfigurar a estética das garrafas faça diferença. As bebidas – com especial destaque para o vinho, no nosso caso – são parte de uma cultura ancestral com muita força, ciência, arte e importância económica. A apreciação é também uma experiência estética e os rótulos são ponto de partida e chegada de conversas à mesa. Mais: não há evidências de que os avisos chocantes reduzam o consumo – diz-nos a experiência do tabaco. Combata-se o problema com educação e sensibilização ampla para os riscos do álcool, preserve-se a harmonia da experiência.
Legislar sobre este tipo de alertas é, além do mais, entrar num túnel burocrático sem fim. O abuso de gorduras saturadas aumenta o risco de doença cardiovascular. Anúncio nos pacotes de batatas fritas? O excesso de sal leva à hipertensão. Painéis à entrada dos restaurantes? Ler cansa os olhos. Advertências nos livros? Repare: a cada palavra que lê desta crónica, os seus olhos habilitam-se à dioptria. Atenção! A cada inspiração de oxigénio que dá, é menos uma que lhe resta até à campa. Em última análise, viver mata. Ninguém avisa os recém-nascidos?
O alívio generalizado com a queda da medida foi especialmente cómico em Portugal. Num país com 70% de abstenção nas eleições europeias, é engraçado ver, por uma vez, tanta gente a viver um euro-debate intensamente. E o centro desse debate ser o vinho. Em 2020, a União Europeia aprovou um pacote financeiro histórico com poder para ditar o futuro do planeta, mas o assunto passou sem grandes paixões. Sobre os rótulos, a insurreição foi tal que houve quem bradasse contra o “recuo civilizacional” da proposta, um “verdadeiro atentado contra os valores fundamentais da cultura europeia”. Lindo. É bonito ver a História, a cultura, a identidade e a coesão europeia à mesa dos portugueses. Por agora, está tudo bem. Mas nunca baixar a guarda!
Lembre-se disto o caríssimo leitor, a ilustre leitora, da próxima vez que tiver oportunidade de votar para o Parlamento Europeu. É certo que poderá estar a determinar o rumo da União Europeia nos campos da Saúde, da Economia, da Cultura, da Defesa, da Educação. Mais: poderá estar a determinar o futuro dos rótulos das nossas vinhaças.
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