Num universo paralelo, digno de uma parábola de Huxley ou Bradbury, um Estado pondera desmantelar uma ponte histórica, a fim de que um super-iate de um super-bilionário possa passar à larga. Um exercício distópico que garantiria provavelmente um best-seller, não fosse real. Mas é. O ano é 2022, a cidade é Roterdão, o iate é do patrão da Amazon.
Seria de esperar que caísse o Carmo, a Trindade e a ponte Koningshaven. Por agora, será apenas a ponte. O anúncio da câmara de Roterdão gerou polémica, mas não a suficiente para travar o processo. A ponte, que é monumento nacional, data de 1877 e foi reconstruída após bombardeamento nazi na Segunda Guerra Mundial. Em 2017, após obras de restauro, o poder local garantiu aos cidadãos não voltar a tocar nesta estrutura de relevo para o património da cidade holandesa. Mas os quarenta metros de altura do iate mais luxuoso do mundo precisam de passar e abre-se uma exceção.
Avaliado em 430 milhões de euros, o iate de Bezos tem 127 metros de comprimento e está a ser construído na Oceanco, empresa especializada em iates de luxo do também bilionário Al Barwani. Um porta-voz do município de Roterdão justificou-se à France Presse informando que aquele é “o único caminho para o mar”. De acordo com o responsável local, não seria “prático” concluir a construção do iate – isto é, instalar os mastros – noutro sítio.
A câmara de Roterdão está em cheque. Depois de, no início da semana passada, ter confirmado oficialmente a intervenção na ponte, um grupo de locais começou a organizar-se para atirar ovos à passagem inaugural do barco. O município parece ter recuado entretanto, alegando não ter ainda validado burocraticamente o processo – contrariando, assim, o seu próprio comunicado num espaço de três dias. Tudo indica, de qualquer modo, que a obra avançará. O mal está feito.
Como é óbvio, compreendem-se os argumentos para fazer obras da ponte: o próprio Bezos cobrirá os custos da obra, a venda do iate traz valor económico, a ponte voltará ao que era após a intervenção. De um ponto de vista hiper-pragmático, toda a gente percebe. Ora, o erro está aí mesmo: a complexidade da existência não passa toda no filtro do pragmatismo. O valor de um monumento nacional não se limita ao peso da sua estrutura de ferro. A História de uma cidade, a sua paisagem, a sua cultura e a sua identidade não estão à venda. Não podem estar à venda. Se a Torre de Belém, ou a dos Clérigos, impedirem a aterragem de um helicóptero, não vamos demoli-las e reconstruí-las para dar licença. Ordena-se, sim, ao ilustre helicóptero que vá dar a volta. Por muito que a moral pós-capitalista queira submeter todas as esferas da vida humana ao pragmatismo do big money, os Estados têm o dever de zelar pela dignidade coletiva. E um Estado rico e poderoso tem obrigação acrescida.
Num mundo pós-capitalista, de desigualdades crescentes, cabe à política regular, moderar, legislar e equilibrar poderes no sentido de proteger os cidadãos. A fortuna de Jeff Bezos cresceu 70 milhares de milhões de euros em vinte e um meses de pandemia. Terá provavelmente como sustentar outras alternativas que não passem por demolir património nacional. Se as forças democráticas não defenderem implacavelmente a importância da identidade e da cultura, os projetos populistas aproveitar-se-ão disso – já se aproveitam. Enquanto a ética económica da total subserviência ao dinheiro subsistir, a Democracia está em risco.
Numa era em que tanto se fala de diálogo e de construir pontes, seria bom começar por não deixar que os fetiches bilionários as destruam.
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