A oito mil quilómetros dos nossos anseios eleitorais, nasce uma vacina contra a Covid-19 diferente de todas as outras: mais barata, mais simples, livre de patente. O projeto pode responder por fim aos apelos da Organização Mundial de Saúde. Já conhecida como a “vacina para o mundo”, a Corbevax foi desenvolvida no Texas com donativos locais e uma tecnologia que possibilita a reprodução fácil em países com menos recursos. Depois de as grandes farmacêuticas recusarem a partilha das fórmulas, com o aval de uma boa parte dos líderes mundiais, a Corbevax pode fazer acelerar a vacinação nos países pobres, prevenindo a doença, a morte e os caldeirões de novas variantes.
Uma longa caminhada até aqui. Maria Bottazzi e Peter Hotez, os coordenadores da equipa, dedicam-se ao desenvolvimento de vacinas para outras espécies de coronavírus desde 2003, na Faculdade de Medicina de Baylor. A Corbevax foi criada com recurso a um método convencional de produção, com décadas de existência – o que facilita a réplica em contextos mais pobres, quando comparada, por exemplo, com as vacinas Pfizer e Moderna, de tipo mRNA. A Corbevax rebate assim um dos principais argumentos da indústria para a não-libertação das patentes: a alegação de que os laboratórios dos países pobres não teriam meios para produzir em segurança mesmo que tivessem a receita. Não é, todavia, o método que a torna única: há mais de 60 vacinas em desenvolvimento com a mesma técnica. O que a faz, de facto, ímpar é a visão dos seus criadores – determinados a contribuir para acabar com a pandemia sem assegurar primeiro os seus lucros. Os testes apontam 90% de eficácia contra a estirpe original da covid-19 e 80% contra a Delta. As provas contra a Ómicron estão em curso.
Será a viragem do jogo? Keith Martin, diretor executivo do Consortium of Universities for Global Health, acredita que sim. Sabemos há meses que a grande prioridade no combate à pandemia é o acesso mundial à vacina. Mas Hotez, criador da Corbevax, lamenta a falta de interesse dos agentes públicos no arranque do projeto: “as pessoas estavam tão obcecadas com a inovação que ninguém se interessou numa solução simples, barata e duradoura para vacinar o mundo todo”. Dada esta falta de interesse, o financiamento da investigação (sete milhões de dólares) envolveu uma série de fundações e organizações filantrópicas. Curioso: um sétimo do investimento foi garantido por uma marca local de vodka. (A realidade supera sempre a ficção). Bert Beveridge, empresário de San Antonio conhecido por “Bertito”, começou por fazer vodka em casa para vender aos amigos. Hoje multimilionário, doou um milhão de dólares à investigação, juntando-se às fundações JPB, Kleberg e MD Anderson. Ora aqui está uma bela chapada de bebida branca.
Levantar as patentes sempre foi questão de ética. Em abril do ano passado, 170 ex-governantes e prémios Nobel assinaram uma carta a exigi-lo, para que todos os países equipados pudessem produzir e distribuir vacinas. Os líderes de 99 nações, incluindo Joe Biden, e o Papa Francisco lançaram apelos, juntando-se à ONU e OMS. Foram todos ignorados, por receio de que o levantamento excepcional das patentes, imposto pelo poder político, afastasse o interesse do setor privado em investir no futuro da saúde. Nenhuma farmacêutica se mexeu para pôr o combate da pandemia à frente do lucro.
Precisamos de um tratado internacional que assegure a mobilização da inteligência para a salvação de vidas com eficácia e igualdade, numa lógica de primazia dos Direitos Humanos sobre o lucro privado. Nem que fique só para a próxima pandemia.
Até lá, lutaremos para que o humanismo ganhe espaço ao leme da investigação científica. E valham-nos os filantropos do comércio de vodka. Há lições de bom senso até nas bebidas espirituosas.
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