2021: Odisseia no Espaço. O diretor do Programa Alimentar da ONU, David Beasley, desafiou bilionários a doar seis mil milhões de dólares para salvar milhões de vidas. Elon Musk respondeu desafiando a ONU a “demonstrar exatamente” como o donativo – correspondente a 2% da sua fortuna – acabaria com a fome no mundo. No Twitter – plataforma que considera adequada para discutir a hipótese -, o homem mais rico do planeta acrescentou que exigiria à organização laureada com o Nobel da Paz um modelo de contabilidade open source, para controlar os gastos. Em dois tweets sobranceiros, Musk revelou a seriedade com que leva o esforço para erradicar a fome. Mas, porque há vidas em jogo, a agência da ONU respondeu com um plano. Aguardamos resposta. Cheque, Musk.
É tempo de os multibilionários acordarem “para a vida”, alerta Beasley. À saída de uma crise mundial onde as maiores fortunas cresceram, é ainda mais bizarro que os seus detentores não sejam chamados a fazer a sua parte. Afinal de contas, todos fazemos. O dinheiro não resolverá, por si só, a fome, o conflito, as desigualdades, mas o investimento é fundamental. No início deste Verão, o ProPublica trouxe à luz a infeliz realidade: muitas das pessoas mais ricas do mundo pagam zero ou quase zero impostos. Qualquer trabalhador americano ou europeu paga mais, em proporção – você paga mais – do que Michael Bloomberg, Jeff Bezos ou Warren Buffett. Em 2018, Musk pagou zero em impostos federais sobre os seus lucros astronómicos. Os neoliberais radicais incomodam-se pouco: deve ser a meritocracia a funcionar.
Parece haver pudor em falar no assunto, mas há que romper o tabu. Não podemos estar dispostos a perpetuar a pobreza, a estrangular a classe média, a demolir direitos básicos, a subfinanciar a Saúde, a Educação, a Cultura, a prescindir da mais elementar justiça social, a ver o planeta ruir – tudo para não enfadar pessoas cuja conta bancária parece um erro matemático. Aquilo a que os anglo-saxónicos chamam billion (mil milhões) é uma aberração algébrica. Veja-se: um milhão de segundos equivale a onze dias. Mil milhões de segundos equivalem a 31 anos. Em euros ou dólares, é esta a diferença entre um milionário e um bilionário. Elon Musk, cuja fortuna se avalia em 323 mil milhões de dólares, foi confrontado por uma internauta com o ultraje que é não pagar impostos e abriu o Twitter – tribuna de preferência para as grandes causas – para perguntar aos seguidores se devia vender ações para pagar a sua parte. 58% das pessoas responderam que sim, que dava jeito. Dava, de facto, jeito – só surpreende haver tanta gente que o questione. Mesmo pondo de lado a gritante questão ética, vivemos num panorama de crise e conflito, desigualdades crescentes, emergência climática. Não faz sentido que o ónus de tudo isto recaia sobre as classes médias, testando com o dorso de quem trabalha o Princípio Fundamental da Dinâmica de Newton, sem convocar os mais poderosos a fazer o mínimo.
Já se faz tarde. Sem menosprezar avanços recentes ou a complexidade dos circuitos fiscais, salta à vista a timidez dos governos na matéria. Mas esta é também uma questão civilizacional, uma questão de valores. É missão para a política e para a diplomacia.
O precedente está aberto.
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