Na semana que passou foi conhecido o relatório final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa.
Como tem sido apanágio da nossa comunicação social, dedicou mais tempo ao acessório, do que ao essencial das conclusões finais do relatório.
O Estudo centrou-se na vítima, dando-lhe voz e tentando quebrar a barreira do silêncio que tantas vezes impede que se possam investigar e punir os agressores e evitar futuros abusos pelos mesmos.
Baseando-se num determinado enquadramento e contexto (abusos sexuais na Igreja Católica), do mesmo deverão ser extraídas as devidas ilações para outros contextos de socialização da criança, com as mesmas caraterísticas.
O primeiro aspeto a evidenciar do estudo, é que habitualmente, são as vítimas a iniciar o silenciamento, por sentimentos de medo, vergonha e culpa. Os que revelam as situações são uma expressiva minoria. Quando o fazem, não existem quadros anteriores típicos, e concretizam-no junto de pessoas próximas; da atitude destas depende a evolução futura da situação.
Tal constatação deve levar entidades públicas e privadas a campanhas de divulgação e formação de todos os que colaboram em contextos similares, tais como escolas, agremiações desportivas ou musicais, de acolhimento ou tutelares, que trabalham com crianças, no sentido de estarem atentos e comunicarem, de imediato, às autoridades competentes, quaisquer suspeitas de abusos sexuais de que tenham conhecimento, impondo-se como um dever ético que se deve sobrepor a questões como a defesa da reputação de uma instituição ou o medo de represálias.
Medidas preventivas como as sugeridas pela comissão, tais como “manuais de boas práticas” e “locais de apoio ao testemunho e acompanhamento das vítimas e familiares” devem ser implementadas.
Outro aspeto evidenciado é a necessidade de manter vias de comunicação abertas, seguras, independentes, para as vítimas puderem «falar disso», e que contribuam para a preparação, acompanhamento e encaminhamento das mesmas, se essa for a sua vontade, para as instâncias competentes para a investigação criminal.
Tendo como ponto de partida que foram aduzidas razões para só agora terem revelado os factos, como a questão da “confiança” nos profissionais e na independência da comissão e a garantia do anonimato, importa assegurar que do ponto de vista do procedimento criminal sejam asseguradas às vítimas as mesmas garantias.
Nesse sentido, importa dar efetivo uso a mecanismos já existentes na legislação, designadamente no que tange à proteção de vítimas e testemunhas no processo penal, designadamente:
– Que a prestação de declarações ou de depoimento que deva ter lugar em ato processual público ou sujeito a contraditório decorra com ocultação da imagem ou com distorção da voz, ou de ambas, de modo a evitar-se o reconhecimento da testemunha;
– A não revelação da identidade da vítima durante alguma ou em todas as fases do processo;
– Sempre que tenha de prestar testemunho, o faça em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões;
-A designação de um técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o seu acompanhamento e, se for caso disso, proporcionar à testemunha o apoio psicológico necessário por técnico especializado;
– Assegurando que o depoimento ou as declarações da testemunha deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime e que seja evitada a repetição da audição ao longo das várias fases do processo.
A confiança no sistema de justiça e num processo penal que assegura garantias não só aos arguidos, mas também às vítimas, são igualmente fatores que contribuirão, de forma decisiva, para dar voz às vítimas, investigar e punir os agressores, e evitar que que os abusos se perpetuem no tempo.
OUTROS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ Conselho Consultivo da PGR: O que é e para que serve
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.