O recente Acórdão do Tribunal Constitucional trouxe para a praça pública a discussão em torno da conservação dos denominados “metadados” pelos fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas ou de uma rede pública de comunicações.
Mas afinal o que são metadados?
O conceito de metadados abrange dados de diferente natureza, quer dados de base (referem-se à conexão à rede, independentemente de qualquer comunicação, permitindo a identificação do utilizador de certo equipamento — nome, morada, número de telefone), quer dados já considerados de tráfego (os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede – localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência).
A conservação dos dados em causa é imprescindível para que os fornecedores de serviços possam cobrar dos seus clientes o consumo efetuado e para que estes possam reagir contra cobranças indevidas.
A Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março de 2006, de acordo com a qual os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas teriam de conservar tais dados por um período de um ano a contar da data da conclusão da comunicação, com a finalidade exclusiva de, se necessário, poderem ser utilizados para «investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes».
De acordo coma mesma Lei a transmissão dos referidos dados só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, deteção e repressão de crimes graves.
A Diretiva n.º 2006/24/CE veio a ser considerada inválida pelo TJUE, em acórdão de 2014, proferido no processo “Digital Rights Ireland Ltd”, com base nos seguintes fundamentos:
– Por abranger, em geral, todas as pessoas que utilizam serviços de comunicações eletrónicas, sem que, no entanto, as pessoas cujos dados são conservados se encontrem, ainda que indiretamente, numa situação suscetível de dar lugar a ações penais. Assim, aplica-se mesmo a pessoas em relação às quais não haja indícios que levem a acreditar que o seu comportamento possa ter um nexo, ainda que indireto ou longínquo, com infrações graves.
– Não exigir nenhuma relação com uma ameaça à segurança pública e designadamente não se limitar a uma conservação nem de dados relativos a um período de tempo e/ou a uma zona geográfica determinada e/ou a um círculo de pessoas determinadas.
– Não estabelecer critérios objetivos que permitam limitar o número de pessoas com autorização de acesso e de utilização posterior dos dados conservados ao estritamente necessário à luz do objetivo prosseguido.
O Tribunal Constitucional Português veio declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma que previa a obrigação de conservação de metadados para efeito de «investigação, deteção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, após tal ter sido requerido pela Provedora de Justiça, com legitimidade para tal e fundando-se na declaração de ilegalidade do TJUE.
A consequência da declaração de inconstitucionalidade é que a investigação de um elevado número de tipos de crimes graves – crimes informáticos, terrorismo, rapto, homicídio, exploração sexual de crianças online, etc., vai ser muito difícil, senão mesmo impossível. Em muitos casos será mesmo impossível iniciar uma investigação.
As condições impostas pelo TJUE ou não são viáveis ou, sendo-o, tornam a retenção inútil.
A conservação dos metadados apenas é útil se os dados se referirem a todos os cidadãos, de forma indiscriminada, pois no momento em que os dados são retidos e conservados, não é possível saber se, porventura, aqueles dados poderão vir a ser necessários, como prova de um crime. Somente após ter ocorrido um crime, os dados entretanto retidos de forma generalizada e indiscriminada assumirão valor probatório.
A inadmissibilidade de conservação dos referidos dados vai gerar nos cibercriminosos um sentimento de total impunidade, de impossibilidade de serem alcançados.
Ao cuidarem dos direitos ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação informativa deixaram desprotegidos de forma não proporcionada e equilibrada os direitos à vida, liberdade, à segurança e ao património de todas as vítimas dos crimes em causa que desta forma ficam totalmente desprotegidas.
O que falhou?
Falhou desde logo o legislador europeu a quem competia corrigir os vícios e regular a matéria em conformidade com o acórdão do TJUE e evitado o resultado esquizofrénico daí decorrente com soluções díspares ao nível dos Estados-membros, onde nem todos declararam inválidas as leis nacionais que transpunham a diretiva da retenção de dados.
Falhou o legislador nacional que não cuidou de tirar as devidas ilações da declaração de invalidade da Diretiva e não adotou, desde logo, como a Alemanha, uma legislação interna sobre a matéria.
Falhou o próprio processo de construção da União Europeia, que na falta de um momento constitucional autónomo e de um “povo constituinte”, levou a que os “juízes do Luxemburgo se tenham assumido em poder constituinte furtivo”, que se impõe aos princípios constitucionais dos EM, carecendo, contudo, de legitimidade direta e democrática.
Resta aguardar que o Governo, através de proposta de lei, e/ou à Assembleia da República, prepararem e aprovem um quadro normativo sobre a matéria que obvie, por um lado, às inconstitucionalidades levantadas pelo TC e, por outro, garanta a possibilidade de conservação dos metadados, em condições de segurança e por um período razoável, a que possam aceder as autoridades judiciárias quando tais elementos se afigurem essenciais para a investigação e descoberta dos autores de crimes graves.
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