A Lei n.º 94/2021, de 21/12 (que aprovou medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal e leis conexas) estabeleceu um regime processual penal para as pessoas coletivas e entidades equiparadas.
Uma das alterações respeita à representação dessas mesmas pessoas coletivas quando constituídas arguidas, estabelecendo a nova lei que tal representação compete a quem a pessoa coletiva designar e, na sua falta, por quem a lei designar.
Por outro lado, estabelece-se que em caso algum a pessoa coletiva ou entidade equiparada pode ser representada pela pessoa singular que também tenha a qualidade de arguido relativamente aos factos que são objeto do processo.
O regime de representação adotado é diverso do previsto no Regime Geral das Contraordenações, onde se prevê que as pessoas coletivas e as associações sem personalidade jurídica são representadas no processo por quem legal ou estatutariamente as deva representar, solução que nos parece acertada, porque permite obstar a um eventual conflito de interesses ou estratégias de defesa entre representante e representada e, por outro lado, evita perturbações e fraudes processuais.
Estranhamente, não foi esse o critério de representação adotado na legislação decorrente da estratégia anticorrupção, criando um regime inovador, diria mesmo “habilidoso”, manifestamente desfasado da realidade maioritária do tecido societário português e que, simultaneamente, não protege adequadamente os interesses da pessoa coletiva, como poderá contribuir para entorpecer ainda mais o andamento dos processos ou facilitar fraudes processuais.
Desde logo porque faz depender da própria pessoa coletiva a designação do representante quando constituída arguida, sem qualquer correlação com o regime legal e estatutário de representação da mesma.
Parece que poderá designar qualquer pessoa, mesmo que não tenha qualquer relação com a pessoa coletiva.
Por outro lado, num tecido societário constituído essencialmente por sociedades por quotas e uma grande percentagem de cariz familiar, em que a propriedade do capital se confunde com a gerência da própria sociedade e que, por esse facto, são os gerentes aqueles que em melhores condições estão de representar a sociedade no processo, o impedimento decorrente de não poderem representar a sociedade quando sejam simultaneamente arguidos, o que acontecerá amiúde das vezes, vai determinar a escolha de alguém estranho à sociedade e que, portanto, não estará nas melhores condições para defender os interesses da mesma.
O que vai acontecer é termos a representar uma sociedade arguida não quem tem interesse em zelar pelos interesses da mesma, mas alguém que apenas vai ser designado para cumprir uma imposição legal, isto é, para assegurar uma representação meramente formal.
Mas o regime estabelecido tem igualmente implicações processuais.
O Ministério Público sempre que quiser constituir uma sociedade ou qualquer outra pessoa coletiva como arguida ficará sempre na dependência de que a mesma indique um representante ou, não o fazendo, terá que iniciar um procedimento tendente à indicação de um representante legal, uma espécie de curador ad litem, com as inerentes delongas processuais para o efeito e, correndo-se o risco de o procedimento em relação à pessoa coletiva prescrever por não ter sido possível constituí-la como arguida atempadamente.
Parece-nos uma anormalidade processual que a autoridade judiciária não possa, de per si, aferir quem é o representante da pessoa coletiva ou equiparada, com recurso aos instrumentos legais e estatutários ao dispor, de forma a que no momento em que exista suspeita fundada da prática de crime possa operar a sua constituição como arguida por comunicação ao seu representante e tenha, ao invés, que ficar dependente de designação da própria pessoa coletiva para o poder fazer.
Em suma, o legislador adotou um regime de representação das pessoas coletivas ou equiparadas que, em regra, não servirá para acautelar os interesses destas, mas que seguramente contribuirá, em muito, para manobras e delongas processuais.
Costuma dizer-se não dar ponto sem nó eu aqui diria que foi dado um nó, mas com várias pontas soltas por esclarecer.
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