Uma das alterações ao código de processo penal aprovada pela Lei n.º 94/2021, no âmbito das medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, e que vai entrar em vigor em março de 2022, irá gerar o caos nos tribunais, na área da jurisdição criminal.
Medidas que deveriam servir para combater de forma mais eficaz e célere a corrupção vão, no caso concreto, contribuir para travar ainda mais os processos de forma totalmente injustificada.
Com a referida alteração, um juiz que tenha tido uma qualquer intervenção no inquérito, designadamente autorizado, ordenado ou praticado algum dos atos cuja competência lhe está reservada, fica automaticamente impedido de intervir na instrução e no julgamento.
Atualmente esse impedimento apenas se verifica se o juiz aplicar medidas de coação de proibição e imposição de condutas, de obrigação de permanência na habitação ou de prisão preventiva privativa da liberdade.
A razão de ser do referido impedimento assenta no particular juízo que o juiz tem de efetuar para aplicar as referidas medidas de coação e que consiste em concluir pela existência de fortes indícios da prática do crime imputado. Um juízo indiciário desta natureza implica para o juiz que as aplica um convencimento positivo de tal modo intenso sobre a existência de indícios da culpabilidade do arguido que deixa ele de poder ser visto como estando plenamente capaz de decidir a causa, em julgamento ou recurso, sem uma predisposição no sentido da condenação.
Ora, tal não se verifica manifestamente nas situações em que apenas tem de ordenar ou autorizar atos.
A alteração legislativa em causa se vier a entrar efetivamente em vigor vai provocar uma sucessão de juízes impedidos em efeito dominó, provocando a intervenção de juízes de outros tribunais que os terão que substituir e que, por sua vez, vão deixar de efetuar o serviço que lhes está atribuído.
Os atos que podem determinar o impedimento de um juiz para a instrução ou julgamento são tão elementares como autorizar uma busca ou um exame, a apreensão de correspondência ou correio eletrónico ou o recurso a intercessões telefónicas, onde é manifesto que a valoração a efetuar não pressupõe qualquer juízo positivo de culpabilidade sobre qualquer arguido, sendo que pode mesmo nem existir ainda qualquer suspeito.
A situação é de tal forma absurda que poderá mesmo vir a acontecer e se calhar com frequência, que todos os juízes de uma determinada comarca possam vir a ficar impedidos de intervir na instrução ou no julgamento, em virtude de durante o período das férias judiciais, em que estão escalados para assegurar o turno do serviço urgente, intervieram em vários inquéritos autorizando buscas ou intercessões telefónicas.
Tal alteração legislativa para além de não ter qualquer fundamento minimamente sustentável à luz dos princípios aplicáveis ao processo penal, uma vez que a intervenção em atos isolados não implica qualquer comprometimento do juiz com a acusação, apenas vai servir para embaraçar e dificultar o andamento dos processos, criando um verdadeiro imbróglio para os órgãos de gestão das comarcas com os sucessivos impedimentos e consequentes substituições que terão de ser efetuadas.
A referida alteração legislativa surge de forma inesperada, sem que tenha existido uma discussão sobre a mesma, designadamente sem que tenha sido dada a conhecer para parecer aos conselhos superiores das magistraturas, às associações representativas dos magistrados ou mesmo à Ordem dos Advogados.
Se tivesse existido essa consulta teria sido detetado o problema e, eventualmente, resolvido antes da sua aprovação.
A ligeireza em aprovar um conjunto de pacotes legislativos perante a eminente dissolução da Assembleia da República pode ter sido o terreno propício a que se tenham feito aprovar alterações legislativas, algumas como a acima referida, no mínimo duvidosas, e que queremos acreditar se tenha devido a incúria ou precipitação.
A bem da celeridade da justiça penal importa que o parlamento resultante das próximas legislativas corrija o problema ainda antes da sua entrada em vigor.
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