O nosso processo penal tem, por determinação constitucional, estrutura acusatória, o que se realiza por meio da distribuição de funções entre o juiz do julgamento e o Ministério Público, tendo três fases: o inquérito (fase presidida pelo Ministério Público); a instrução (fase facultativa presidida pelo juiz de instrução); e o julgamento.
A atribuição constitucional do exercício da ação penal ao Ministério Público significa que a este cabe a titularidade da fase que se consubstancia no “conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação”.
Sobre a atribuição da direção da fase do inquérito ao Ministério Público e sobre a sua compatibilização com o comando constitucional “toda a instrução é da competência de um juiz” pronunciou-se o TC em sede de fiscalização preventiva do CPP de 87 ao considerar que este comando apenas exigia que a prática de atos que contendessem diretamente com os direitos fundamentais fossem autorizados ou praticados pelo juiz de instrução, o qual aparece nesta fase única e exclusivamente como um juiz das garantias.
O exercício da ação penal pelo Ministério Público é orientado pelo princípio da legalidade.
A legalidade impõe, por um lado, o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal, isto é, perante a notícia de um crime (conhecimento de factos com relevância criminal), o Ministério Público não tem qualquer base discricionária, tendo que abrir a fase de inquérito – não pode o MP com base em critérios de oportunidade ou obedecendo a quaisquer ordens internas ou externas deixar de iniciar o procedimento criminal.
Por outro lado, quanto à prossecução do procedimento criminal, se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado um crime e de quem foi o seu agente o Ministério Público deduz acusação, revelando uma estreita vinculação desta Magistratura à lei, não estando sujeito a quaisquer critérios de oportunidade política ou outras.
O Ministério Público surge no processo penal não como uma “parte”, mas como um órgão da administração da justiça com a particular função de colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito e, por isso, ser uma magistratura dotada de autonomia.
A incondicional intenção de verdade e justiça – tão intencional como a do juiz – que preside à intervenção do Ministério Público no processo penal, torna-se claro que a sua atitude não é a de interessado na acusação, antes obedece a critérios de estrita legalidade e objetividade.
Só, assim, se compreendem a obrigatoriedade de que todos os atos praticados pelo Ministério Público fiquem a constar do processo, não podendo omitir ou ocultar provas, e que oriente a sua atuação no processo com o único propósito de descoberta da verdade material, seja ela favorável ou desfavorável ao arguido, podendo mesmo recorrer no interesse exclusivo do arguido.
O interesse de agir do Ministério Público está em correlação direta com a defesa da legalidade democrática e dos interesses que a lei determinar.
O que encontramos necessariamente na atuação do Ministério Público, na fase de inquérito, na seleção de factos, respetiva e necessária subsunção jurídica, na identificação do agente e no “ajuizamento” da culpa, é uma metodologia e uma finalidade em tudo coincidentes com a função jurisdicional.
Sendo o inquérito uma fase do processo (e, não, um processo prévio), o mesmo deve obedecer às regras de um processo equitativo e que assegure todas as garantias de defesa do arguido.
Ao contrário do que têm referido ao longo da última semana, alguns comentadores que se apelidam de “juristas” e mesmo representantes de intervenientes judiciários, o que só se explica por profunda ignorância do nossos sistema processual penal, o Ministério Público não é “parte” e o juízo a efetuar pelo Ministério Público em sede de despacho final no inquérito e pelo juiz de instrução em sede de decisão instrutória, é exatamente o mesmo: quer a acusação, quer a decisão de pronúncia pressupõe “terem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”.O grau de exigência dos indícios é exatamente o mesmo na acusação e na decisão de pronúncia, ou seja, um juízo de prognose com base nos indícios recolhidos de que existe uma possibilidade razoável de condenação em julgamento.