Ao longo da nossa história as grandes fomes andaram sempre a par das epidemias. Embora possamos estar a viver momentos diferentes, vai-se tornando visível o impacto da pandemia de Covid-19 na nossa economia e no aumento de largas franjas da população em situações de vulnerabilidade alimentar. Embora possam parecer coisas diferentes, a insegurança alimentar, o cancro, a diabetes, a hipertensão arterial e muitas outras doenças não-Covid19 que estão atualmente escondidas, estes são fenómenos absolutamente interligados. Não atacar este problema de forma integrada será como tentar tapar uma cama com uma manta curta, como iremos ver de seguida.
Comecemos pelo que sabemos da Covid-19 após um ano de contacto com a doença. Esta infeção é particularmente grave ou ataca de forma mais violenta todos aqueles que estão em estados inflamatórios acima de valores considerados normais. Ou seja, diabéticos, hipertensos e obesos entre outras patologias, mas estas são as mais prevalentes na nossa população ocidental. São estes doentes que mais tempo estão hospitalizados e que têm as formas mais graves da doença. E se estes doentes tiverem descontrolados metabolicamente, ou seja, se não tiverem a sua doença controlada, por razões económicas, por descuido ou por falta de acompanhamento do seu nutricionista ou médico as consequências e impacto da infeção são piores.
Os doentes com doença crónica onde a Covid-19 é mais impiedosa são também os mais frágeis economicamente. Segundo o INSA, em Portugal, os indivíduos sem qualquer nível de escolaridade ou apenas com o primeiro ciclo do ensino básico, apresentam maior prevalência de obesidade e obesidade abdominal, o mesmo se passando para outras doenças crónicas. A diabetes é mais frequente nos indivíduos sem escolaridade ou com o ensino básico (20,1%) e nos indivíduos sem atividade profissional remunerada (20,6%). A prevalência mais baixa da doença ocorre nos indivíduos com o ensino superior (4,0%) e com atividade profissional (5,3%).
Durante o primeiro estudo sobre a alimentação dos portugueses durante o confinamento (Estudo React-Covid), realizado pela DGS e apoiado pelo Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) observou-se que um em cada três portugueses (33,7%) manifestou preocupação quanto a uma possível dificuldade no acesso aos alimentos e 8,3% indicou mesmo ter dificuldades económicas no acesso a alimentos. Ainda no mesmo estudo, foi identificado um padrão alimentar menos saudável, caracterizado pelo aumento do consumo de snacks salgados, refeições pré-preparadas, refrigerantes e take-away e, por oposição, por uma diminuição do consumo de fruta e hortícolas. Este padrão de comportamento alimentar foi mais comum nos inquiridos mais jovens, do sexo masculino, com maiores dificuldades financeiras e em risco de insegurança alimentar. Ou seja, durante o período analisado, a adoção de comportamentos alimentares mais saudáveis pareceu ser mais difícil de atingir nas populações mais jovens e desfavorecidas socioeconomicamente.
Destes factos, recolhidos em trabalhos recentes, realizados em Portugal e de boa qualidade científica, podemos observar que as populações mais vulneráveis economicamente são muito provavelmente as mais afetadas pela doença aguda infeciosa e as que, devido à sua alimentação inadequada, criam o ambiente propício ao agravamento da doença crónica que depois os acompanhará ao longo da vida. Nestes casos, a pobreza tende a originar pobreza num ciclo difícil de quebrar.
Depois do diagnóstico, o que podemos fazer e que soluções apresentar para os tempos que aí vêm?
Em primeiro lugar, apoiar diretamente as populações desfavorecidas com alimentos de boa qualidade nutricional. Infelizmente, sabemos hoje as repercussões dos programas de ajuda alimentar que utilizavam as sobras das casas de cada um ou os excessos da produção agrícola europeia e norte-americana. Em Portugal, temos experiências recentes de programas públicos de ajuda alimentar onde se investiu na qualificação nutricional da oferta, passando a estar representados produtos alimentares como pescado ou hortícolas que no passado eram raros, oferecendo um cabaz alimentar equilibrado com menos açúcar e gorduras de má qualidade.
Em segundo lugar, criar espaços públicos, favorecedores de uma alimentação saudável, independentemente da condição social de cada um. Escolas, universidades, jardins de infância, hospitais, centros de dia, lares de idosos, misericórdias… locais onde se deve comer de forma saudável e ser referência de bem comer. Locais onde o financiamento público deve depender da capacidade de cumprir cadernos de encargos exigentes no que toca à alimentação saudável. Muita coisa foi feita nos últimos anos, mas temos ainda muito caminho por percorrer.
Depois, proteger os mais fracos das mentiras e fantasias alimentares. Quem vende produtos alimentares de má qualidade alimentar, nomeadamente com quantidades elevadas de açúcar, de gordura, de aditivos e pouco mais, regista rentabilidades elevadas que lhes permite investir muito em publicidade. Em particular, no marketing de produtos alimentares destinados a crianças, na publicidade a eventos desportivos e culturais. Felizmente, Portugal publicou em 2019 (Lei 30/2019) uma lei muito aplaudida a nível europeu que estabelece restrições à publicidade a produtos alimentares destinados a crianças que contenham elevado valor energético, teor de sal, açúcar, ácidos gordos saturados e ácidos gordos transformado. Mas só a lei não chega, é importante que os encarregados de educação saibam que ela existe e estejam atentos, porque na internet ainda se pode observar muita publicidade a produtos alimentares de má qualidade nutricional.
Por fim promover uma cultura alimentar que proteja um modo de comer que seja ambientalmente sustentável e acessível a todos. Felizmente, Portugal inscreveu a “Dieta Mediterrânica na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade, no decurso da 8ª sessão do Comité do Património Imaterial em 2013. Desde então, existe o compromisso de Portugal proteger este modo de comer que nos protege (nomeadamente da inflamação) e que é feito de coisas simples e acessíveis à maioria das famílias portuguesas. Ou seja, sopas variadas, pratos de panela como jardineiras e estufados, fruta fresca, pão de qualidade, azeite, produtos da horta em abundância, feijão, ervilha, fava e grão, alguns lacticínios e pouca carne e peixe.
Com estas bases da alimentação saudável promovidas em toda a sociedade e acessíveis a todos os portugueses estaremos mais preparados para o que aí vem. E evitaremos os velhos presságios de que a doença e a falta de acesso à alimentação saudável andam a par.