A Constituição da República Portuguesa proclama que ao Ministério Público compete exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade.
No âmbito do exercício da ação penal compete-lhe em especial receber as denúncias, as queixas e as participações, apreciar o seguimento a dar-lhes e dirigir o inquérito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita legalidade e objetividade.
Perante a notícia de um crime o Ministério Público tem sempre de iniciar o inquérito, não podendo deixar de o fazer com base em quaisquer critérios de oportunidade ou obediência a qualquer ordem hierárquica, com exceção das situações expressamente previstas no Código de Processo Penal e que se prendem com crimes em que a atuação do MP está dependente do exercício do direito de queixa ou nas denúncias anónimas quando os factos denunciados não integram a prática de crime.
Ao longo do inquérito o MP realiza um conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
A atuação do MP, orientada por critérios de estrita legalidade e objetividade, visa a descoberta da verdade material e não formular ou sustentar uma acusação a todo o custo, pelo que lhe é vedado ocultar quaisquer meios de prova que tenha recolhido no inquérito ou orientar a condução da investigação apenas com o intuito de recolher provas favoráveis à decisão de acusar.
A fase de inquérito cuja direção está atribuída ao MP é uma fase do próprio processo e não uma qualquer fase preliminar ou privativa desta magistratura.
Com o CPP de 1987 a figura do juiz de instrução ficou reservada para as medidas investigatórias que diretamente contendem com os direitos liberdades e garantias das pessoas e passou o Ministério Público a deter o “dominus” da fase de investigação por excelência.
Temos, assim, que toda a atividade do Ministério Público empreendida no inquérito tem de ficar espelhada no próprio processo que depois seguirá integralmente para as subsequentes fases processuais como a instrução, o julgamento e o recurso.
Ao contrário de outros sistemas europeus em que o processo penal apenas se inicia com a acusação e em que as provas são apresentadas pelo Ministério Público apenas em sede de julgamento, assumindo a posição de parte e impendendo sobre o mesmo um ónus de prova, no nosso sistema vigora um paradigma de MP totalmente diferente, assumindo-se como uma verdadeira magistratura.
O nosso processo penal não permite uma atividade do MP exercida fora do processo, à sua margem, num qualquer “dossier” privativo, em que os atos não assumem natureza de atos processuais, próprios de sistemas em que o Ministério Público constitui um corpo de funcionários administrativos.
Tal conceção, para além de ilegal, rompe com a nossa tradição baseada em duas magistraturas (judicial e do MP) ligadas aos tribunais, dotadas de estatutos parecidos, com boa parte da formação em comum e a sua sujeição a critérios de estrita legalidade e objetividade.
A gestão da hierarquia no seio do MP assume características próprias, derivadas exatamente da aludida condição de magistrados dos seus membros, e distingue-se claramente da hierarquia própria da Administração Pública, para não falarmos já da hierarquia militar.
A possibilidade de instruções superiores, dadas aos magistrados, está bastante condicionada nos seus pressupostos e nas suas consequências, a ponto de lhe ser assinalado sobretudo, um papel de organização e uniformização de procedimentos, e não de determinação da opção a tomar em certo processo.
A opção do legislador na revisão do Estatuto do Ministério Público em 2019 foi clara ao estabelecer expressamente que a intervenção hierárquica em processos de natureza criminal é regulada pela lei processual penal, menção que não aparecia no anterior estatuto e que, portanto, não pode ser inconsequente.
Não pode, por isso, a Procuradora-Geral da República através de uma diretiva fazer tábua rasa de uma lei de valor reforçado, revelando em todo este processo um manifesto despotismo e inadequação no exercício das funções que lhe estão legal e constitucionalmente confiadas.