A concessão ao arguido de uma atenuação especial ou mesmo dispensa de pena quando colabore com as autoridades judiciárias na descoberta e investigação de um crime e na identificação dos seus responsáveis não é novidade no nosso sistema jurídico-penal.
Em relação a um conjunto de crimes dispersos entre o código penal e legislação avulsa o legislador previu soluções dessa natureza.
As razões que justificam tal opção pelo legislador prendem-se, por um lado, com as dificuldades investigatórias inerentes a alguns tipos de criminalidade organizada, com estruturas complexas e fechadas, nascida num mundo global, sofisticada, que recorre aos métodos tecnológicos mais avançados, apresentando-se o seu combate como um desafio para os Estados de Direito Democrático, sobretudo para aqueles com recursos de investigação mais limitados ou em que ocorre uma “dispersão da vitimização”, isto é, em que todos, em certa medida, auferem uma vantagem do crime e que, por isso, não têm especial interesse em que o mesmo seja descoberto.
Por outro lado, a colaboração do arguido, quando relevante e sincera, corresponde a uma manifestação do seu arrependimento pelo crime praticado e um esforço desenvolvido no sentido de reparar as consequências nefastas do mesmo, que num sistema penal moderno orientado para a ideia de ressocialização ou reintegração do delinquente, constitui um bom indício da necessidade de uma pena menos severa ou mesmo da desnecessidade de pena.
Assim, encontramos tais soluções no Código Penal quanto aos crimes de branqueamento de capitais (art. 368/11) e corrupção ou recebimento indevido de vantagem (art. 374-B), prevendo-se em ambos os casos a possibilidade de atenuação especial se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis ou no último caso a dispensa de pena para quem denunciar o crime antes do início da investigação criminal.
Na lei que estabelece medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira (Lei 36/94), prevê-se quanto aos crimes de corrupção, peculato e participação económica em negócio e infrações económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional a possibilidade de atenuação especial no caso de colaboração relevante (art. 8).
No âmbito da lei dos crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos (Lei 34/87) prevê-se um regime igual ao previsto no Código Penal quanto aos crimes de corrupção e recebimento indevido de vantagem (art. 19-A).
Na lei da droga (DL 15/93) onde se estabelece que se o agente abandonar voluntariamente a sua atividade, afastar ou fizer diminuir por forma considerável o perigo produzido pela conduta, impedir ou se esforçar seriamente por impedir que o resultado que a lei quer evitar se verifique, ou auxiliar concretamente as autoridades na recolha de provas decisivas para a identificação ou a captura de outros responsáveis, particularmente tratando-se de grupos, organizações ou associações, pode a pena ser-lhe especialmente atenuada ou ter lugar a dispensa de pena (art. 31).
Soluções desta natureza ainda se encontram na lei de combate ao terrorismo (Lei 52/2003 – art. 4/13), quanto ao crime de tráfico e mediação de armas (art. 87/3, da Lei 5/2006), no regime de responsabilidade criminal por comportamentos antidesportivos (art. 13, da Lei 50/2007) e na lei da responsabilidade penal por crimes de corrupção no comércio internacional e na atividade privada (art. 5, da Lei 20/2008).
A relevância dada à colaboração do arguido não é, pois, uma novidade no nosso sistema jurídico.
Aliás, os sistemas penais contemporâneos reconhecem ao arguido a possibilidade de, querendo, em função do comportamento que decida adotar após a prática do delito, participar ativamente na definição do seu próprio destino em termos sancionatórios.
O plano apresentado pelo Governo de combate à corrupção deve constituir uma oportunidade para se estruturar um modelo único de valoração positiva do comportamento do arguido que decida denunciar e colaborar com as autoridades, reunindo no Código Penal o respetivo regime e clarificando os pressupostos para a aplicação da dispensa ou atenuação especial da pena.
Entendemos que a concessão do benefício ao arguido que decida colaborar deverá pressupor sempre a assunção da responsabilidade do mesmo nos factos e não só a incriminação de terceiros e a entrega ao Estado da vantagem advinda do facto ilícito, para afastar a sua conotação negativa com “delação”, “bufos” ou “infiltrados”.
A opção pela dispensa ou pela atenuação deverá depender não só do momento e grau de colaboração do arguido ter sido essencial ou apenas relevante, mas também do grau de responsabilidade do mesmo no crime e na organização criminosa para que não seja favorecido o cabecilha de uma organização criminosa porque apercebendo-se da iminência de ser descoberto resolve fornecer às autoridades informações do crime cometido e que compromete terceiros, levando a que só estes sejam objeto de punição quando tinham tido um menor envolvimento no crime.
O arrependimento, quando integral e não condicional, só pode ser valorado de modo positivo por parte da lei e do julgador, pois é só através do arrependimento que o arguido se reencontra com os valores vigentes e impostos por uma dada ordem jurídica e, de certo modo, se inicia o processo de “reparação do dano”.