Em pleno regresso à escola e a poucos dias do início das aulas, não vou escrever sobre os dois temas mais quentes do momento: a preparação das escolas para receber o vírus Covid-19 e a polémica em torno da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento. Mesmo com o regresso às aulas presenciais, sabemos que nada voltará a ser como dantes. Vivemos tempos de grande imprevisibilidade e, a bem da verdade, estamos como o poeta: I know not what tomorrow will bring. Uma coisa é certa: são tempos difíceis para os sonhadores e professor que não for capaz de sonhar nunca será um bom professor.
Nunca como este ano a mudança e o sonho me fizeram tanto sentido. Talvez devêssemos começar o ano letivo, nas escolas de todo o país, com uma atividade que fosse transversal a todas as disciplinas, ciclos e idades: A Semana da Tolerância. Que melhor época do que 2020 para uma reflexão coletiva sobre a urgência da tolerância e da solidariedade? Em vez de passarmos as primeiras semanas de aulas a recuperar e a consolidar conteúdos curriculares do ano anterior, talvez isto devesse acontecer de forma integrada ao longo do ano e não em atacado… Perante os diferentes contextos nacionais e internacionais que, obviamente, se refletem na escola, parece-me mais urgente fazer o apelo da memória e relembrar a razão pela qual estamos aqui e o caminho percorrido para aqui chegar.
Começar o ano letivo 2020/2021 com uma viagem devidamente organizada pelas muitas atrocidades do passado não faria mal a ninguém, muito menos a pais e educadores, alunos e professores. Assim, uma campanha devidamente articulada que apelasse à memória de todos os regimes e fanatismos políticos e religiosos que assolaram e continuam a querer assolar o mundo em que vivemos seria a forma de a ESCOLA mostrar à sociedade uma das suas mais importantes missões: ensinar a aprender a viver com os outros.
De que forma os currículos refletem as grandes problemáticas mundiais? Se bem me lembro, pelo menos na minha disciplina – Português – é perfeitamente possível um aluno terminar o 12o ano sem ter explorado e refletido adequadamente sobre o Estado Novo e os efeitos devastadores da Ditadura se a sua escola não tiver optado pelo estudo da obra de Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis. E, numa análise a quinze exames de História, o tema do Holocausto surgiu apenas duas e só na segunda fase.Ninguém pretende entrar no folclore populista que estes temas (e outros tão atuais) poderão suscitar e, muito menos, cair no perigo de alguns paralelismos e comparações… mas hoje, mais do que nunca, importa que o aluno seja capaz de se colocar no lugar do outro. Infelizmente, os testemunhos vivos destas e de outras atrocidades começam a perder-se no tempo e o recurso a histórias verídicas é urgente. Os sobreviventes do Holocausto e de outros regimes atrozes estão a morrer ou já morreram e se não for através dos currículos, a verdade perder-se-á. À escola compete também trabalhar valores e atitudes que, sejamos realistas, nem sempre são transmitidos em casa. E nós, professores, sabemos disso muito bem.
O mundo está a tornar-se um local de intolerâncias nos mais variados setores da Sociedade, do Desporto à Política, passando pela Economia e pela Religião. As histórias de exclusão, fanatismo e xenofobia são também a pedra de toque diária na vida das escolas que, como sabemos, refletem a vida social. Tão importante como repor conteúdos curriculares é valorizar atitudes e valores de respeito pelo outro, seja ele gordo ou magro, preto, branco, chinês, de Leste, cigano, portador de deficiência ou gay. A tendência para a normalização das pessoas e a não aceitação das diferenças leva à intolerância que leva ao extremismo que leva à violência. Humanamente, e para citar apenas dalguns exemplos, é impossível compreender o Holocausto ou as leis da Sharia.
Fala-se por vezes do Holocausto como se este fosse uma coisa exótica. Há também uma certa fantasia lusitana em torno da Ditadura do Estado Novo. E isto não pode acontecer. Ainda há dias recebi uma longa mensagem de correio eletrónico a exaltar todas as obras de Salazar… A Democracia pode ter muitos defeitos e nunca será um processo pacífico mas é ainda o melhor sistema que conhecemos (apesar do muito trabalho que dá a manter). E é sempre um compromisso. Connosco e com os outros. É da responsabilidade de cada um de nós. E se isto não começar em casa e na escola, desde cedo, aquilo que aconteceu no passado voltará a acontecer.
Qual o destino inevitável da memória? Será integrar os acontecimentos e depois esquecê-los. Mas há acontecimentos que não podem nem devem ser esquecidos. O único crime cometido pelos seis milhões de Judeus que morreram nos campos de concentração foi o crime de ser diferente. E compete à escola inscrever para a posteridade as perseguições, a violência e a tirania que marcaram as épocas e tendem a continuar a marcar. Evocar o passado para, através da memória fazer a sua reconstituição, deveria ser uma das funções da escola neste início de ano letivo. Porque a mudança, como acontece nas tragédias gregas, é brusca e pode apanhar-nos desprevenidos. Resgatar a memória do passado pode ser o melhor exercício de Cidadania que podemos oferecer aos nossos alunos. E venha quem vier, se a escola quer cultivar o Humanismo, deve começar por aqui.
Defendo uma Educação Humanista que forme seres humanos solidários e tolerantes e não meros monstros instruídos. E é essa a função da escola. Ou deveria ser… Devemos ser tolerantes mas, sobretudo, devemos ter a coragem de Franz Zappa ao afirmar que não tocava para nazis…