Na mesma altura que o FNUAP- Fundo das Nações Unidas para a População apresentava o seu relatório anual – Situação da População Mundial 2020, intitulado “Contra minha vontade – Desafiando as práticas que prejudicam as mulheres e as meninas e impedem a igualdade”, uma mulher era formalmente acusada pelo Ministério Público de ter sujeito a filha de 2 anos à MGF- Mutilação Genital Feminina, o primeiro caso que vai chegar a julgamento no nosso país após a tipificação do crime no Código Penal fruto da ratificação da Convenção de Istambul.
Também este ano o Relatório Estatístico do Asilo do Observatório das Migrações 2020 identifica 24 pedidos de proteção internacional por requerentes do sexo feminino, 21 mulheres adultas e 3 crianças filhas dessas mulheres, sendo 9 pedidos por MGF: 6 casos da Serra Leoa, país onde a prevalência da prática é de 86%, e 1 caso respetivamente da Guiné Conacri, prevalência de 95%, da Gambia, prevalência de 76% e do Gana, que tem baixa prevalência na casa dos 4%.
O relatório do FNUAP deste ano é sobre práticas prejudiciais sobre mulheres e raparigas e identifica 18 práticas, entre as quais a MGF, crimes de honra, casamentos precoces, seleção de sexo com viés de género, incesto, entre outras. No Relatório Estatístico do Asilo outras razões dos pedidos de mulheres para proteção internacional, para além da MGF, enquadram-se nestas práticas, nomeadamente casamentos forçados, mulheres sem marido e por isso sem direitos e ainda casos ligados a discriminação devida à orientação sexual.
Este cruzamento de informação de diferentes fontes vem demonstrar que quando falamos de MGF e de outas práticas nefastas, o problema é transversal, não é só dos países ou das comunidades de onde as práticas são frequentes, mas sim de todos os países subscritores da Agenda 2030 das Nações Unidas e muito em particular daqueles que têm pessoas ou comunidades que observam as práticas ou que a elas foram expostas.
Portugal está dentro deste enquadramento e por essa razão tem, desde 2000, um Plano de Ação de combate à MGF, alargado em 2018 às práticas nefastas, incluindo casamentos precoces. Uma das medidas relevantes deste plano é a recolha de dados estatísticos pelo Sistema de Saúde de situações detetadas em consultas ou atos médicos, de mulheres adultas submetidas à prática. Em 2019 foram registados na Região de Lisboa e Vale do Tejo 129 novos casos de mulheres com algum tipo de MGF, o dobro de casos identificados em 2018.
Esta realidade não significa o aumento de casos realizados em Portugal, mas uma melhor formação e capacidade dos profissionais de saúde de compreenderem o fenómeno e serem capazes de o identificar, em mulheres de diferentes idades que foram sujeitas à MGF noutras geografias.
Contudo, com a consolidação de conhecimento sobre MGF em Portugal nos últimos anos ao nível dos Serviços Públicos, há aspetos que têm surgido de novo e que importa acautelar criando respostas adequadas, nomeadamente na saúde, na educação e na justiça.
No que respeita à justiça é imperioso que magistrados e magistradas, quer do Ministério Público, quer judiciais, tenham formação adequada para melhor perceberem o fenómeno da MGF e outras práticas nefastas como os Casamentos Infantis, Precoces ou Forçados, o enquadramento sociocultural das comunidades praticantes, mas também da situação das mulheres que submetem as filhas à prática, incluindo do acompanhamento que elas próprias necessitam porque na sua maioria também elas foram vítimas de mutilação e até de um casamento que não desejavam com alguém que não conheciam.
Quanto aos casos de pedidos de proteção internacional que surgem ao abrigo da violação de Direitos Humanos específicos de mulheres e raparigas ligados a práticas nefastas, é fundamental que estas mulheres, para além do processo legal, tenham acompanhamento bio-psico-social adequado e para tal é necessário que os diferentes serviços públicos desenvolvam procedimentos de acompanhamento destas situações.
Ao nível da saúde é necessário continuar a melhorar a recolha de dados relativos a mulheres que estão em Portugal e que foram sujeitas a MGF, porque está identificada por profissionais de saúde a impossibilidade de registar no sistema de saúde situações de mulheres que não têm número de utentes do SNS, e há muitas situações de mulheres que não tendo a situação regularizadano país ficam fora deste importante radar de sinalização, por outro lado os casos detetados nos serviços privados de saúde ainda não são registados no sistema.
Diz-nos o Relatório do FNUAP que há 200 milhões de mulheres no mundo que vivem com uma MGF e que só este ano 4,1 milhões estão em risco de serem submetidas à prática. Se nada for feito até 2030 haverá no mundo mais 68 milhões de mulheres vítimas deste flagelo. Os dados em presença da pandemia Covid-19 apontam já para o recuo em 2 anos nos esforços alcançados para o abandono da MGF e outras práticas nefastas. Portugal tem feito o seu caminho, mas pelos dados e acontecimentos mais recentes é momento de darmos mais um passo em frente no modelo de intervenção e na resposta à MGF no nosso país.