Nas últimas semanas uma onda de protestos varreu o mundo sob o lema Black Lives Matter, após a morte de George Floyd assassinado por um polícia, nos Estados Unidos, em direto, de um telemóvel para o mundo.
Esta onda chegou a Portugal no momento em que os números da Covid-19 ganhavam maior expressão na Região de Lisboa e Vale do Tejo, onde o contágio não aconteceu de forma indiscriminada, surgiu entre a população que vive em Lisboa, ou nos concelhos confinantes e nos Bairros limítrofes desses concelhos: Sintra, Amadora, Odivelas e Loures.
Ao longo dos últimos dias também chega a informação que há focos de infeção entre as pessoas que trabalham na construção civil, nas grandes obras da capital, e nos centros de logística da Azambuja. E onde vivem estes trabalhadores? Vivem nos bairros dos concelhos mais afetados, em zonas pobres e de exclusão social. Nos bairros sociais ou de génese ilegal da Grande Lisboa vive, um número muito significativo, muitas vezes maioritário, de pessoas negras, imigrantes e ciganas, que são pobres e têm profissões pouco qualificadas.
Dos milhares que se manifestaram em Lisboa contra o racismo, estavam muitas das pessoas que vivem nesses bairros, pessoas que nunca deixaram de estar em risco nos últimos 3 meses, porque tinham que continuar a trabalhar, e de quem ninguém quis verdadeiramente saber. Pessoas que encontraram nesta onda de sobressalto pelo homicídio de George Floyd uma razão para virem manifestar-se contra o racismo que existe na sociedade portuguesa, que se lhes agarra à pele, à falta de oportunidades e às suas vidas difíceis.
Perante todo este sobressalto cívico que coloca o racismo e a discriminação étnico-racial no centro da agenda política, vem o líder do maior Partido da oposição, Rui Rio, a propósito da manifestação antirracista, dizer que” não há racismo na sociedade portuguesa”.
A quem quer ser Primeiro Ministro exige-se-lhe uma responsabilidade acrescida de, no mínimo, procurar conhecer o país que quer governar e de não fazer discursos básicos, construídos sobre o manto do país dos brandos costumes e da teoria lusotropicalista que descarta o racismo. A narrativa de Rio e outras do género, são facilitadas pela falta de informação estatística. O ano passado perdemos a oportunidade de incluir a pergunta sobre a origem étnico-racial nos censos de 2021, mantendo assim este vazio de informação que dificulta a intervenção das políticas públicas no combate ao racismo estrutural, mas que, pelo contrário, ajuda a manter o discurso negacionista.
Apesar da tentativa de desvalorização de Rui Rio, o debate político sobre o tema está a fazer-se no Parlamento e na sociedade portuguesa. Através de intervenção parlamentar, como o relatório sobre racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial de que fui relatora em 2019, ou dos três Projetos de Resolução do PS, BE e da deputada Joacine Katar Moreira, que recomendam ao Governo um conjunto de medidas de combate à discriminação étnico-racial, aprovados a semana passada na Assembleia da República, ou das manifestações com milhares de pessoas em todo o País, das notícias, dos comentários televisivos e dos múltiplos artigos de opinião publicados.
Veio juntar-se à polémica em torno do tema a vandalização da estátua do Padre António Vieira. As estátuas são símbolos, e esta estátua em particular, inaugurada em 2017, é de duvidoso significado simbólico, porque infantiliza os índios, colocando-os aos pés do padre que ergue uma cruz, que tanto pode ser de proteção como de evangelização. Mas esta opinião, ou outra qualquer sobre quem foi o Padre António Vieira, não justifica, em nenhuma circunstância, a vandalização a que a estátua foi sujeita.
Justifica sim um debate em torno do passado e dos símbolos, à luz da realidade das épocas, mas tendo sempre em conta o impacto na realidade atual, sem preconceitos e com a humildade de nos confrontarmos com a História e com o nosso mito da idade de ouro, a época dos descobrimentos que tem associada um lado negativo, a subjugação dos povos nativos e a escravatura. Com o nosso colonialismo que foi tão mau como o colonialismo dos outros, e que tem ainda hoje impactos na vida das pessoas racializadas: na oferta do percurso educativo, nas oportunidades profissionais, no acesso à habitação, na relação com a justiça e com as forças de segurança, para dar alguns exemplos.
É preciso desocultar o racismo, a injustiça, a exclusão e as desigualdades que persistem na sociedade portuguesa com base na cor da pele, no grupo étnico de pertença ou na origem, dando um salto civilizacional, urgente e necessário, na luta contra o negacionismo que alimenta o populismo, e na defesa da justiça, da igualdade e da democracia.