Agora que se passaram alguns meses desde o início da pandemia, começam a ficar mais claros os caminhos do futuro alimentar que esta crise instalou. Talvez o mais claro e mais aterrador é que a tecnologia veio para ficar, substituindo o ser humano sempre que possível. A tecnologia que é resistente a vírus, pelo menos aos nossos. Em todas as atividades humanas parece ser esse o caminho e a produção agrícola não escapará a esse karma. Desde há muito que os recursos humanos são um dos elos fraco da agricultura: quem produz em quantidade e substitui o ser humano por máquinas consegue, de um modo geral, ser mais competitivo. Foi assim que a agricultura do novo mundo se impôs e que em Portugal começámos, por exemplo, a produzir azeite no Alentejo em maior quantidade e mais barato. E foi ainda por esta razão, e para fixar pessoas nas zonas rurais, que a União Europeia tem vindo a alterar as regras da política agrícola comum ao longo dos últimos anos, por vezes, independentemente da quantidade de alimentos produzida.
A mecanização, o aumento da robotização e a inerente substituição do ser humano nas atividades produtivas revelou que muitos de nós repetíamos tarefas facilmente substituíveis por máquinas que vão pensando mais e melhor nos últimos tempos. A função algorítmica engana-se, em média, menos do que o ser humano e permitirá substituir o nosso pensamento na maior parte das funções, desde conduzir um automóvel até fazer um diagnóstico de doença. Esta crise só acelerou esta substituição. Quando voltarmos ao trabalho muitos de nós terão um emprego mais frágil e muitas chefias pensarão cada vez mais em planos B, em que poderão ter ajuda (e trabalhadores) sem riscos de vírus. E se pensarem que neste mundo coabitam quase 8 mil milhões de seres humanos em permanente contacto, o risco desta pandemia se repetir será enorme nas próximas décadas.
Quando o risco aumenta, a tendência é o confinamento. O isolamento. Encerrar ou encerrar-se dentro de certos limites. Esperar que a tempestade passe. Esta tendência que irá estender-se mesmo no desconfinamento está a levar muitos políticos europeus a ter um discurso protecionista (“é tempo de começarmos a produzir localmente, de não dependermos de terceiros”). Se esta regra se pode aplicar facilmente à produção industrial (à produção nacional de ventiladores, por exemplo), na área da produção alimentar poderá não fazer tanto sentido. A começar nas questões ambientais e a terminar na luta contra a fome. Cada região do planeta tem condições de clima e de solos próprias, adaptadas para a produção de certos alimentos de forma mais eficiente. Que garantem um baixo investimento energético e de recursos materiais e um elevado benefício. Portugal nunca foi grande produtor de trigo ou de café, mas tem condições excecionais para o tomate ou para o azeite. Claro que sobrevivemos sem importar café ou sem comer pão de trigo, assim como podemos sobreviver exportando menos vinho ou concentrado de tomate. Mas insistir na autossuficiência agroalimentar e para que se comprem produtos nacionais (de facto de elevada qualidade) que por vezes só conseguimos produzir a um preço mais elevado pode significar retirar o acesso alimentar de vários alimentos a muitos portugueses que hoje vivem no limiar da pobreza e que serão mais pobres e desempregados no período pós-COVID. O ideal seria uma solução de equilíbrio, entre a proteção ambiental e a proteção do emprego produzindo alimentos baratos e nacionais, mas não creio que neste mundo pós-COVID se encontre uma solução fácil para este compromisso que garanta a segurança alimentar da população portuguesa economicamente mais frágil.
Por fim, a questão da saúde. A pandemia infeciosa que nos assola tem revelado quais os mais frágeis face ao vírus. Que são, curiosamente, os que já eram mais frágeis para a doença crónica. Os obesos, os diabéticos, os hipertensos, as pessoas com problemas oncológicos ou com doença cardiovascular. As pessoas descompensadas metabolicamente pelo consumo excessivo de energia, de sal, de açúcar ou de gordura animal. Estas pessoas representam mais de metade da população adulta portuguesa, que, por sua vez, tendem a ser os mais pobres e os que mais vão sofrer nesta crise. Aqui nada de novo. A história das pandemias repete-se mais uma vez, afetando mais os mais desfavorecidos, tal como nos últimos 2500 anos.
*As distopias são frequentemente criadas como avisos ou como sátiras onde a tecnologia se insere como ferramenta de opressão, por ter escapado ao controle humano. Tenho esperança que o nosso futuro não será tão sombrio como aqui se conta.