Num aviso à navegação, Paolo Gentiloni, Comissário Europeu para a Economia, disse: “O projeto de União nasceu depois da Guerra. Depois de uma luta comum de sucesso contra esta terrível pandemia, ele pode florescer ou enfraquecer dramaticamente.” De facto! A Covid-19 é mais uma prova para a UE.
Já se tornou cliché dizer que as crises são uma oportunidade de reconfiguração de poderes que podem levar a ruturas e avanços na UE. Não foi o caso da anterior crise das dívidas públicas da Zona Euro (2009-2015). Apesar de ter levado a algumas mudanças, não se alterou o paradigma da economia política do Euro, o que poderia ter acontecido se tivessem sido criados os títulos de dívida pública europeia (Eurobonds).
A ideia de Eurobonds está no âmago dos debates económicos em torno da criação do Euro. Economistas de inspiração keynesiana, sensíveis ao papel regulador do estado na economia capitalista, alertavam para o facto de a criação de uma moeda única para economias nacionais estruturalmente diferentes, retirando soberania monetária aos Estados, retirava-lhes, inerentemente, uma ferramenta política fundamental para enfrentar crises económicas. Concebiam, por isso, que para uma moeda única ser mutuamente vantajosa teria de ser acompanhada de instrumentos de partilha de riscos e de redistribuição financeira ao nível europeu, como um sistema de mutualização de dívida e um orçamento comum capaz de responder a momentos de recessão.
Do outro lado, estavam os economistas seduzidos pelo monetarismo, corolário de um neoliberalismo assente na desregulação económica e social desencadeada nos anos 80, a projetar que seria a disciplina financeira dos Estados que asseguraria a estabilidade do Euro, assente, por sua vez, na confiança do mercado de capitais, vital para a garantia de financiamento ao Estado. Neste sentido, uma zona monetária comum devia apenas pressupor a estabilidade de preços e a decisão monetária independente do poder político.
Ora, foi esta teoria que vingou, pressupondo assim que os Estados teriam de cumprir critérios nominais, consagrados no Pacto de Estabilidade e Crescimento (défice orçamental menor do que 3% do PIB e dívida pública abaixo de 60% do PIB), o que promoveria a convergência económica real da Zona Euro (ZE). Neste quadro, um Estado que não tivesse um crescimento económico sustentado, face à perda de soberania monetária, ficaria apenas com a despesa pública e a política fiscal como instrumentos para equilibrar finanças em momentos de crise.
Quem ganhou e quem perdeu? Todos ganharam e alguns também perderam.
Ganharam todos os países, com a facilitação do comércio europeu, liberto de custos administrativos cambiais e de oscilações de preços. Ganharam aqueles com moedas e economias fracas, como Portugal, pelo acesso a crédito mais barato e por ficarem menos vulneráveis no sistema monetário internacional ao integrarem uma moeda forte. Ganharam as economias mais robustas, com antigas moedas fortes, como a Alemanha, que na conversão definitiva para o Euro, viram os seus preços descer e com isso aumentar a sua já competitiva exportação. Ao contrário, perderam as economias de moeda fraca, como Portugal, ao verem os seus preços subir, perdendo competitividade de exportação. Ganharam países que, já com economias competitivas e tendencialmente excedentárias, puderam praticar políticas fiscais mais atrativas e captar, face à liberdade do mercado europeu, receita de impostos de empresas europeias para os seus orçamentos nacionais – os conhecidos paraísos fiscais da UE. Esta era outra das perversões previstas pelos economistas keynesianos. O cunho neoliberal do Euro, não só não acautelava a influência da política fiscal de um Estado no desempenho económico dos outros, como os colocaria a competir ferozmente por políticas fiscais mais atrativas.
Qual o balanço de 20 anos de Euro? A crise de 2009-2015 pôs a nu o crescimento das assimetrias na ZE, entre um núcleo de Estados excedentários, o centro geográfico e fundador da UE, e uma periferia deficitária. A liquidez de capital gerada pela acumulação de excedentes em determinados países, como a Alemanha e a Holanda, teria de ser escoada do sistema financeiro nacional. No Sul, está o destino deste capital, em economias deficitárias, que também erradamente assentaram os seus modelos de crescimento num contínuo aumento de endividamento. A crise de 2008, pela necessidade de injeção de capital pelos Estados nos bancos, agravou os já existentes défices e dívidas públicas da Europa do Sul. Mas todos têm culpa no cartório. Não só a incúria da governação nacional do Sul, como a nórdica, cuja banca emprestou sob a batuta especulativa de rentabilizar a acumulação de liquidez, facilitada por um mercado de capitais totalmente liberalizado. Ficou evidente o desenvolvimento de uma ZE em dois modelos de crescimento antagónicos, interdependentes e que se alimentavam mutuamente. A crise revelou, enfim, as deficiências estruturais da política económica da ZE. Porém, a solução foi (excetuando a criação da União Bancária e de um papel interventivo do BCE) mais do mesmo, apertando formas de supervisão e punição dos desvios estatais aos critérios financeiros.
A novidade da crise pandémica é que desta vez o moralismo político sobre o alegado despesismo do sul ocioso e negligente já não “cola”. Não só porque, desde 2009, todos os Estados iniciaram esforços de consolidação financeira, como também porque esta crise tem uma origem diferente, com prejuízos humanos terríveis, e é sentida por todos. Embora haja Estados com estrutura para recuperar melhor, o nível de interdependência económica da UE trará uma recuperação lenta e penosa se ela não for simultânea e comummente planeada.
A Covid-19 apela ao valor político da UE! Não é por acaso que o Euro nasce depois da queda do muro de Berlim, e nasce torto! A reunificação alemã, a sua total integração na UE e a hegemonia do marco no sistema monetário europeu despertavam fantasmas históricos. A França precisava de garantir que Berlim continuaria comprometida com a integração comunitária e não se viraria para leste, ressurgindo como potência europeia “à solta”. Se os alemães cederam na abdicação do marco, a França cedeu em desenhar o Euro à imagem alemã. A realidade da construção europeia é feita dos consensos políticos possíveis. Mas apesar das disfunções governativas que isso possa causar, tem-se garantido o mais longo período de paz contínua no território da UE.
Por isso, os Coronabonds, além de racionalidade económica, têm significado político. Não se supõe a mutualização da dívida nacional já existente, mas apenas da necessária para responder à crise económica que aí vem, cujos prejuízos deverão suplantar enormemente os da de 2008. O pacote de compra de dívida que o BCE já anunciou, mais o “Plano Marshall” da Comissão Europeia não deverão ser suficientes. Só a Itália poderá elevar a sua dívida pública para 200% do PIB. Num cenário destes, o grupo Eurointelligence estima que se Roma for submetida a um programa de resgate europeu, pode mesmo ser equacionada pelos tradicionais partidos europeístas a saída do Euro como o menor dos males, mesmo com os custos de transição a isso associados. Um povo já abalado pela tragédia humanitária, seria depois sujeito ao chicote financeiro? Iríamos assistir novamente à sangria de quadros qualificados da periferia para o centro da Europa? Ou, talvez desta vez, o centro não precise, pois demorará também a recuperar numa UE a duas velocidades?
Um cenário destes é um alfobre de extremismos políticos e os partidos centristas terão poucos argumentos para justificar a UE. Segregará ela a Itália, a Espanha e outros em emergência financeira, ou atuará em conformidade com uma economia comum europeia? A diferença do pós-Segunda Guerra Mundial foi que os vencedores resolveram integrar os perdedores e culpados. Não segregaram a Alemanha, como na Primeira Guerra. Não a condenaram a pagar as dívidas de guerra. Não a sujeitaram à mesma penúria económica que levou à ascensão de Hitler. Incluíram-na no plano de recuperação da Europa, patrocinado pelos EUA. E os vizinhos do Benelux, desgastados e inseguros com a vizinhança do “gigante”, aspiravam a um sistema supranacional que equilibrasse a geopolítica ocidental europeia. A França ultrapassou o seu trauma histórico antigermânico e lançou a semente do que hoje é a UE. Este é um projeto quase milagroso. Estados com séculos de história e de identidades vincadas têm voluntariamente transferido soberania para este sistema político em construção. Há que se lhes tirar o chapéu também!! As grandes crises europeias têm sido a terapia de choque do poder político. Que esta pandemia, que muitos líderes comparam com a guerra, os faça reavivar as lições das guerras verdadeiras.