No dia 5 de setembro fez 25 anos que a Conferência das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento (CIPD) teve início na cidade do Cairo. Reuniu delegações oficiais de 182 países, mais de 20.000 participantes e 2.000 Organizações Não Governamentais. Desta Conferência saiu um compromisso e um Plano de Ação, que tem sido posto em prática em todo o mundo, através dos Estados – Governos e Parlamentos e da Sociedade Civil, sob a égide do FNUAP – Fundo das Nações Unidas para a População.
Esta conferência histórica fez parte da década das grandes conferências temáticas das Nações Unidas, das quais saíram compromissos a nível global de investimento no desenvolvimento e no progresso baseados nos Direitos Humanos, nas Liberdades Fundamentais e na Sustentabilidade Ambiental, com a centralidade nos seres humanos.
A CIPD, reforçada pela agenda da Conferência de Pequim sobre os Direitos das Mulheres um ano depois, vem introduzir os direitos e a saúde sexual e reprodutiva como fundamental para o desenvolvimento e a sustentabilidade a nível global.
Temas como o acesso à contraceção, gravidez e parto seguro, o planeamento familiar, combate à mortalidade materna evitável, educação das mulheres e das raparigas, combate a práticas nefastas como a mutilação genital feminina e os casamentos precoces e forçados, educação sexual compreensiva, as migrações e os desafios demográficos fazem parte da concretização do Plano de Ação do Cairo.
Esta agenda tem sido transformadora. O número de mulheres e raparigas que têm usufruído do esforço coletivo para que os seus direitos sejam respeitados e o acesso à saúde sexual e reprodutiva uma realidade, é muito considerável em todo o mundo.
Apesar da transformação positiva operada a nível global, este Plano de Ação teve oposição desde o primeiro momento. Uma oposição alicerçada no fundamentalismo religioso e no ultraconservadorismo político. Desde o Vaticano já na década de 90 onde é forjada a ideia persecutória da “ideologia de género” em oposição a esta e às demais agendas de direitos humanos, à Igreja Ortodoxa, às Igrejas Evangélicas e ao ultraconservadorismo Islâmico, passando por movimentos anti-escolha em todo o mundo, que querem impor uma naturalização da sexualidade e da procriação limitadora dos Direitos Humanos.
Apesar desta oposição ao Cairo e a Pequim, a verdade é que, politicamente, durante 20 anos, houve um entendimento por parte de muitos Estados do benefício desta agenda, quer para os países com maiores problemas, quer para os países que financiam a cooperação em matérias como a saúde sexual e reprodutiva, a educação das meninas e mulheres e o abandono de práticas nefastas.
Contudo, na última década desenvolveu-se uma perigosa mudança conjuntural. Há um grupo de partidos e protagonistas políticos no ocidente que, por razões diferentes nas suas estratégias de poder, encontraram na oposição aos Direitos Humanos e à Igualdade de Género um pilar da sua narrativa, em simultâneo com a agenda anti-imigração, através de um discurso populista e simplista de promoção do medo da destruição da sociedade.
O fundamentalismo dos movimentos anti-escolha, que é também anti-refugiados, anti-diversidade, anti-contraceção, anti-aborto e anti-igualdade, é utilizado para justificar o combate à agenda dos Direitos Humanos e dos Direitos das Mulheres e minorias e serve instrumentalmente o poder formal de protagonistas como Trump, Bolsonaro, Salvini, Orbán ou Putin. Mas também serve o radicalismo da extrema-direita menos institucional, como aquele que reuniu em Lisboa a 10 de agosto, ou ainda, e de forma muito perigosa porque estamos no âmbito da direita dita moderada, partidos e políticos que não resistem à tentação de usar a agenda anti-escolha, através do discurso populista que fomenta o medo da diferença e põe em risco a liberdade democrática, como aconteceu recentemente em Portugal com a Lei da Identidade de Género.
Neste momento em que comemoramos 25 anos do Plano de Ação do Cairo, uma agenda inacabada mas que se pode orgulhar de resultados extraordinários no mundo, há um crescimento de forças de bloqueio, que se têm mostrado em momentos como a Manif Pour Tous em França, o Congresso Mundial das Famílias em Verona, Itália, ou na retirada de apoio financeiro dos Estados Unidos ao FNUAP acusando a Agência de apoiar o aborto.
Só há uma forma de continuarmos a avançar em prol dos Direitos Humanos, dos direitos sexuais e reprodutivos, do direito ao desenvolvimento no mundo, é através da apropriação das mudanças alcançadas pelas comunidades e pelas mulheres, da defesa permanente e radical dos sistemas democráticos, da capacidade de fazer frente a mudanças lesivas, como aconteceu com as mulheres polacas quando foram para as ruas em oposição às restrições da lei do aborto ou como está a acontecer com o povo Rohingya na luta pela sua sobrevivência e com tantas comunidades em África que não querem voltar atrás.