Em 1970 havia uma taxa de 25,7% de analfabetos no país, nos censos de 2011 a taxa era de 5,2%. A escolaridade obrigatória é hoje o 12º ano. A educação é um direito constitucional que o estado deve garantir a todas as crianças, e é também um dever que as famílias devem cumprir.
A escola não é apenas um local onde se ensina e aprende os conhecimentos transmitidos no âmbito curricular, a escola é por excelência um espaço de sociabilização e de aprendizagem de competências e valores sociais no âmbito da cidadania ativa.
Contudo, a legislação nacional permite que as famílias, por razões de natureza estritamente pessoal ou de mobilidade profissional, assumam uma maior responsabilidade na educação dos seus educandos/as, optando por um processo educativo fora do contexto escolar, designado por ensino individual e ensino doméstico.
Há uma diferença entre ensino individual e ensino doméstico. O primeiro é ministrado por um professor/a habilitado fora do sistema de ensino, a que se recorre muitas vezes nos casos de crianças com problemas de saúde que as impedem de frequentar a escola. O segundo é lecionado no domicílio, por um familiar ou por alguém com quem habite, muito utilizado por famílias com profissões ou negócios itinerantes, mas também por famílias que entendem que esta opção é a melhor para as “suas” crianças.
Até agora a lei era genérica relativamente a estas situações e não havia regulamentação para estes casos, em fevereiro foi publicada a portaria 69/2019 que vem definir regras para este tipo de ensino, nomeadamente a existência de um protocolo entre a escola onde se efetua a matrícula, o encarregado/a de educação, o professor/a tutor e o responsável educativo ou seja aquele que vai lecionar no domicílio.
Este protocolo vem garantir, fundamentalmente no ensino doméstico, que estão garantidas as condições para que a criança tenha de facto uma aprendizagem regular para o nível de ensino em que está integrada, que vá ao encontro dos objetivos do Ministério da Educação e da Escola onde está inscrita.
Outro aspeto muitíssimo relevante é o facto de se exigir habilitações literárias adequadas ao responsável educativo que são, no mínimo, grau de licenciatura, bem como de um acompanhamento regular por parte da escola de matrícula através do professor-tutor.
Estas regras agora estabelecidas são fundamentais para que nas situações em que as crianças não frequentem a escola e haja recurso a este tipo de ensino fora do espaço escolar, haja uma garantia das partes, escola e família, de que estas crianças estão a adquirir os conhecimentos e a formação necessária, no cumprimento da lei e de um direito fundamental das crianças portuguesas.
A regulamentação do ensino individual e do ensino doméstico é elementar tendo sido um passo muitíssimo importante nas garantias criadas a estas crianças.
Contudo parece-me que poderíamos ir mais longe nesses mesmos direitos e garantias das crianças. Devíamos refletir se a própria lei não deveria ser mais restritiva na permissão deste tipo de ensino, uma vez que a escola e o contacto com o meio escolar, com outras crianças, com a formação em grupo, tendo em conta a experiência da dinâmica social do espaço escolar, são aprendizagens e experiências muitíssimo importantes no desenvolvimento das crianças.
Diz a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, que o Estado Português ratificou, que “A criança tem direito à educação, que deve ser gratuita e obrigatória, pelo menos nos graus elementares. Deve ser-lhe ministrada uma educação que promova a sua cultura e lhe permita, em condições de igualdade de oportunidades, desenvolver as suas aptidões mentais, o seu sentido de responsabilidade moral e social e tornar-se um membro útil à sociedade”. E ainda que “O interesse superior da criança deve ser o princípio diretivo de quem tem a responsabilidade da sua educação e orientação, responsabilidade essa que cabe, em primeiro lugar, aos seus pais.”
As famílias não podem, alegando a liberdade de escolha, por em causa o superior interesse dos seus filhos e filhas, porque as crianças não são propriedade das famílias. Um bom exemplo para se compreender melhor esta ideia é a possibilidade de opção de não vacinar os filhos/as e o facto de não o fazer puder ter como consequência pôr em causa a vida da criança, ou seja estar a interferir por opção ideológica no superior interesse daquela criança.
Todas as crianças que têm condições de frequentar uma escola devem frequentá-la e a lei devia, no meu entender, ir mais longe nesta demanda.
Há situações para as quais estas modalidades consagradas na legislação são desejáveis e devem ser implementadas. Famílias com profissões ou negócios itinerantes ou crianças doentes que não podem frequentar a escola, contudo esta modalidade ser possível apenas e somente porque a família assim o entende como melhor, parece-me no limite daquilo que são os direitos das crianças.
Sabemos que ao longo dos anos esta possibilidade, muito em particular a do ensino doméstico, ainda mais porque não existia uma regulamentação relativamente às condições em que ocorria, levava a que fosse utilizada por razões culturais, levando ao isolamento de crianças e à interdição de contacto com um contexto social mais alargado e nalguns casos à inibição de uma aprendizagem curricular regular e efetiva.
O ensino e a educação para todos e todas, universal e tendencialmente gratuito, obrigatório até ao 12º ano, são conquistas de abril, conquistas de uma sociedade desenvolvida. É dever do Estado pugnar para que, em nenhuma circunstância, sem razões objetivas que impossibilitem as crianças de frequentar uma escola, alegando por exemplo a liberdade de escolha das famílias, as impeçam de ter um percurso educativo e de aquisição de competências pessoais e sociais.
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