Existem atualmente dois tipos de fome, ambos abrangidos pelo conceito de insegurança alimentar que a FAO cunhou definitivamente nos anos 70. A fome pela ausência de alimentos durante um determinado período tempo, ou seja, as fomes descritas para os continentes asiático e africano ao longo do séc. XX por economistas como Amartya Sen, que vitimaram e vitimam ainda, milhares de pessoas anualmente. E as fome da abundância, pelo excesso continuado de oferta e consumo de calorias vazias (alimentos sem qualquer valor nutricional, apenas fornecedores de energia) que hoje vitíma milhões de pessoas em todo o mundo e que se iniciaram nas sociedades da abundância, como é o caso da sociedade norte-americana, daí que eu lhe chame a “fome americana”.
A “fome americana” aparece com a massificação de alimentos industriais globais, produzidos a baixo custo, com matérias primas baratas e com margens enormes para o seu marketing através da adição de açúcar, sal e gordura. Em muitos casos, com a utilização de óleos, como o óleo de palma e açúcar de origem tropical, produzidos com mão de obra barata em terrenos agrícolas low-cost obtidos à custa da dizimação das florestas autóctones. Esta fórmula de sucesso, franchisada por todo o ocidente, continua a fazer disparar a doença crónica já no Séc. XXI, resultante do consumo concentrado de calorias, açúcar e gorduras. Ou seja, fez disparar a obesidade e todo o cortejo de doenças associadas como a diabetes, a doença osteoarticular, a doença cardiovascular ou o cancro. Esta fome moderna, em que o alimento está presente, mas não aquilo que ele deveria conter (vitaminas, minerais, fitoquímicos e muitas outras micro substâncias originais dos alimentos) está acontecer em toda a cadeia alimentar, atingindo quem tem menos dinheiro no bolso ou, citando de novo o nobel da economia Amartya Sen, atingindo quem tem menos capacidade de trocar o que ganha por comida de verdade.
Esta comida falsa que origina esta fome de nutrientes é também insidiosa na forma como trata o nosso cérebro. O açúcar, o sal e a gordura fazem disparar de imediato os gatilhos sensoriais do prazer neuroquímico mediado pelos nossos neurónios cerebrais, preparados durante milhares de anos para procurar a energia nos alimentos, depois de fomes reais que modelaram o nosso corpo e cérebro nos últimos dois milhões de anos. Depois de ingeridas, estas “bombas” calóricas e sensoriais, infligem danos de difícil retorno. Um exemplo? A ingestão de um hambúrguer duplo que se consome em poucos minutos obrigaria a correr durante aprox. 45 minutos para se gastar o equivalente energético ingerido.
Em Portugal, existe hoje e felizmente, depois de muitos anos de apagão desta realidade, uma descrição pormenorizada de quem está em situação de insegurança alimentar e necessita de ajuda. Que tanto é o pobre, realmente carenciado, da fome africana como é, cada vez mais, o remediado da fome americana que poupa para a promoção da fast-food, consome pastelaria diariamente e não come hortícolas porque não gosta. E depois enche literalmente o Serviço Nacional de Saúde com uma mistura de patologias crónicas, onde o excesso de peso, a diabetes e a hipertensão estão geralmente presentes ao longo de muitos anos de vida e velhice sem qualidade.
Esta nova dimensão da pobreza portuguesa, que atinge mais de 19% da população nacional, não deveria depender da ajuda dos bancos alimentares ou de ONG´s generosas na oferta alimentar. A fome moderna combate-se com apoio alimentar de qualidade nutricional a quem necessita, com a perceção clara de como restringir o acesso facilitado ao lixo alimentar em circulação e, acima de tudo, com uma política de educação e capacitação dos cidadãos para a alimentação saudável.
Como traduzir estas ideias em ação concreta? Isto consegue-se com uma fiscalização implacável dos nossos lares de idosos e com a vigilância da qualidade dos alimentos lá servida por profissionais qualificados. Com a restrição e sensibilização de muitos encarregados de educação para a má qualidade dos alimentos que colocam na lancheira dos seus filhos. Com o ensino do saber cozinhar e da culinária mediterrânica básica na escola e com o dizer não dos consumidores quando entram num restaurante que os tenta matar “literalmente” com uma sopa com mais de 1 g de sal. Muito haveria a dizer sobre a nossa displicência para com a comida lixo e o que nos tira anos de vida saudável. Fazendo de Portugal um dos países com mais idosos doentes e polimedicados de toda a Europa.