Um jovem adulto numa empresa multinacional, que pode ser uma qualquer daquelas em que se trabalha sem horários, por exemplo, chega-se às 10 da manhã e não há hora para terminar. Acontece na banca, consultoras, escritórios de advogados, etc. Pergunto-me como é a vida pessoal de alguém que fica no local de trabalho até às 11 da noite. Qual é o tamanho das outras esferas da sua vida, para além da profissional? Imagino a esfera social, cultural, familiar, amorosa e sexual como minúsculos satélites em redor do grande planeta que é O Trabalho. Não são necessariamente singles mas, na vida destas pessoas resta pouco espaço ou tempo para namorar, jantar com amigos ou qualquer forma de socialização. A agenda está carregada e a vida é no escritório e nos ecrãs. A atração e o flirt misturam-se facilmente com as obrigações da agenda. Não raras vezes o assédio acontece nesse micro-mundo hierarquizado em que apenas alguns detêm o poder e, sob elevadíssimos níveis de stress profissional, os mais vulneráveis acabam por ceder. Mulheres e homens num nível baixo do sistema hierárquico facilmente se sentem sugados numa estratégia de manipulação, como se fizesse tudo parte do jogo. Também, já agora, fora dali quase nada acontece nas suas vidas.
No mundo artístico, um jovem actor a perseguir um trabalho para um papel nalguma peça é enredado numa teia de contactos e encontros sociais onde lhe vão fazendo propostas e falando de possibilidades de trabalho. Aconteceu com um português em Nova York mas também acontece em Portugal, só muda a dimensão da escala. Um certo dia, um determinado agente, numa conversa normal, após um jantar normal e uma noite de copos normal de uma festa normal, propõe ao jovem que suba ao quarto do hotel para afinarem detalhes da proposta. Ambos sabem que o proposto não é “normal”. O jovem vítima sente de alguma maneira que o sistema é assim e, que esse comportamento adquire uma certa “normalização” desculpabilizante para ceder à manipulação, do tipo “é assim que funciona”. Ou simplesmente, embrulhado no medo e na vergonha, não consegue dizer “Não”.
Um professor ou um médico, no seu papel de mentor, procura ensinar determinado procedimento ou algum modelo de intervenção. O aluno ou aluna, estagiário, interno ou o que seja, tem com ele uma relação de confiança e admiração, segue as instruções e vai indo ao compasso marcado pelo mentor, até que chegam a um ponto de alguma ambiguidade na situação. O mentor para explicar melhor acaba por ser desadequadamente invasivo e, por exemplo, tocar no corpo da aluna. Tudo parece muito normal. No momento em que a aluna é assolada por pensamentos de dúvida sobre o que está ali a acontecer, não quer acreditar e agarra-se à ideia de que está a aprender e, por conseguinte, deve permitir esse toque. Mas imediatamente percebe que não. Aquilo não faz sentido. Foge dali para fora sem dizer nada. Não é capaz de dizer nada.
Não é fácil dizer alguma coisa e muito difícil dizer o que deve ser dito. “Não! Não quero, não permito, e não admito o que me está a fazer.” E dizer este “Não”, sem medo. É difícil porque há o peso da figura de autoridade que é o assediador e, do seu poder. Porque há uma situação de desigualdade em que a pessoa se sente o elo mais fraco. Porque há uma manipulação e por isso, coisas a perder, castigos ou represálias. E ainda porque há o peso do que os outros possam pensar e dizer. E tudo isto traz o medo, a vergonha e a culpa. E isto traz o silêncio.
O assédio assume várias formas em variados contextos mas envolve quase sempre uma situação de desigualdade e uma relação de poder. O assédio pode ser completamente explícito e manifesto ou, menos explícito, mais camuflado e escondido.
Os limites e a diferença entre sedução/flirt e assédio são claros. No flirt e na sedução há duas pessoas envolvidas que querem e que alimentam uma comunicação erótica. Na sedução há frisson erótico, há alguma tensão, e é consentido por ambos. O assédio é o oposto e a negação de tudo isto. O assédio é o único recurso dos incapazes.