Tendo Jesus nascido em Belém da Judeia no tempo do rei Herodes, eis que uns magos do oriente vieram para Jerusalém, dizendo: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos o seu astro no oriente e viemos para nos prostrarmos diante dele.”
Ao ouvir isto, o rei Herodes ficou agitado e com ele toda a cidade de Jerusalém. Convocando todos os sacerdotes e escribas do povo, informou-se junto deles sobre onde nasceria o Cristo. Ao que eles responderam: “Em Belém da Judeia: pois assim ficou escrito através do profeta:
E tu Belém, terra de Judá,
não és o menor entre os regentes de Judá,
pois de ti virá o regente,
que apascentará o meu povo de Israel.”
Então Herodes, chamando secretamente os magos, certificou-se junto deles qual o momento em que se tornara visível o astro, e, enviando-os para Belém, disse-lhes: “Ide lá e informai-vos com exatidão acerca do menino. Quando o encontrardes, mandai-me dizer, para que também eu me vá prostrar diante dele.”
Tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que o astro, que tinham visto no oriente, os conduziu, até que, chegando “ao seu destino”, parou por cima do lugar onde estava o menino. Vendo o astro, os magos sentiram intensamente uma enorme alegria. E entrando na casa viram o menino com Maria, sua mãe, e caindo ao chão, prostraram-se diante dele; e abrindo as suas caixas de tesouros, ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra.
Avisados em sonho de que não deviam regressar para junto de Herodes, voltaram para a sua terra por outro caminho.
Bíblia, Mateus 2, 1-12
(tradução de Frederico Lourenço, Bíblia, Vol. I, Novo Testamento, Lisboa, 2016, pp. 229-230.)
Este grupo de quadros mostra-nos uma das mais interessantes e inovadoras cenas que Mateus nos apresenta. De facto, este episódio surge apenas neste evangelho, sendo os outros três totalmente omissos a seu respeito. Os nomes destes homens vindos de oriente, o seu número de três, e a intitulação de Reis, vêm de tradições extra-bíblicas. Aqui, em Mateus, são apenas «uns magos […] do oriente».
A sua função neste texto é dupla. Por um lado, ajudam a colocar historicamente a narrativa, relacionando-a com um monarca, Herodes. Por outro lado, trata-se de um recurso de escrita, que permite introduzir, logo no início do texto, o sentido messiânico e de rejeição de que Jesus será alvo. Com estes magos, é-nos dito que até os pagãos adorariam o Messias judeu, como que afirmando a universalidade da sua salvação, já não apenas para o Povo Eleito, em detrimento das autoridades que o rejeitariam.
(Imagens e dados das Obras de Arte retiradas do site MatrixPix, instrumento da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC): http://www.matrizpix.dgpc.pt)
E essa prefiguração do que conduzirá Jesus à morte está ainda mais completa, como podemos perceber com um olhar mais cuidado para este excerto: para além de já estar criado o quadro em que Jesus não terá o apoio das autoridades, no confronto e no questionamento de Herodes temos a afirmação da realeza de Jesus, o que, no final da sua vida, será o fulcro da acusação que o leva à morte na cruz, onde se dizia, como que confirmando os medos de Herodes: “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”.
Mas o centro destes quadros reside em dois polos de sentido, um deles com ecos especiais na cultura portuguesa. Por um lado, esta cena é a imagem perfeita, através dos «magos» transformados também em «reis», de que os monarcas prestam tributo a Jesus. Por outro lado, este trecho bíblico, remetendo o leitor para o universo do exótico oriental, foi o receptáculo ideal para a representação do “outro”, a novidade da variedade humana que os Descobrimentos trazem para a Europa.
O quadro que aqui temos da oficina de Vicente Gil e Manuel Vicente, centrado na tradição de figuração dos magos, retratados como reis, lança os dois campos de problemáticas antes apontados. Por um lado, os ditos magos são, em toda a imagética a eles aplicada, monarcas, na sua estrita acepção. Por outro lado, o rei negro, dando-nos a proximidade às conquistas em África, apresenta iconograficamente um objecto de grande significado: como que personificando o então famoso Preste João – o rei etíope que ajudaria o reino na afirmação do seu poderio – este Rei Mago tem nas mãos uma oferenda que em tudo nos faz lembrar a esfera armilar que com D. Manuel passa a fazer parte da iconografia real.
Na pintura portuguesa, muito mais que na restante pintura europeia, o rei negro ganhou um lugar que nunca mais foi posto em causa. No painel azulejar de setecentos, ele lá está com uma coroa exótica que nos faz lembrar mais penas que metal. No quadro desse mesmo século, o toucado é retomado como remate da cabeça, mas a cor da pele mantém-se.
No quadro de Grão Vasco, pintado cerca de dois anos após o “achamento” do Brasil, encontramos o mais interessante exemplo da função desta cena bíblica como campo de experimentação na representação do “outro”. De facto, neste quadro temos, na figura de um dos Reis Magos, a primeira imagem europeia de um índio sul-americano, fazendo-nos crer no que pareceria impossível, apenas um ou dois anos depois da chegada ao Brasil: Vasco Fernandes parece ter visto, de facto, um índio, pela forma pormenorizada como o pinta. São seus atributos: um toucado de penas, inúmeros colares de contas coloridas, manilhas de ouro nos pulsos e nos tornozelos, brincos de coral branco e, até, uma flecha tupinambá com o seu longo cabo.
Rematando o comentário a este excepcional episódio, dos mais reproduzidos na pintura portuguesa, retomemos a questão da ideologia régia. Vejamos que dos três Reis Magos, um surge sempre em primeiro plano, algumas vezes a tocar ou muito mais próximo de Jesus. Quem é ele? Ora, sem nome que se lhe possa dar, podemos afirmar que esse Rei Mago, sempre mais próximo de Jesus, é também aquele que sempre é representado de forma mais europeizada. Em todos estes quadros, sem excepção, esse monarca é sempre vestido com parte significativa da roupagem que teria exactamente o rei português na época. Veja-se o caso do quadro contemporâneo de D. Manuel, pintado por Grão Vasco, ou, ainda mais significativo, o do século XVIII, pintado na época de D. João V, que aqui se apresenta, com manto púrpura, ajoelhado na típica posição de vassalagem, como que a prefigurar o título de «Fidelíssimo», que viria a receber da Cúria Papal uma dezena de anos depois.