Era um sábado de novembro e estava sol. Olhei em volta e verifiquei com bom grado que a minha classe não desistira. Vi um auditório repleto de gente cansada, sim, mas não desistente. Essa mesma gente que após uma semana de aulas, deixou a casa e a família para fazer formação das nove às seis. Essa mesma gente que nos últimos dias tenho visto ser espezinhada por políticos, pedagogos de bancada e outros ignorantes do que é verdadeiramente a profissão docente por estes dias em Portugal e, arrisco-me mesmo a dizer, pelo mundo.
O Congresso Paulo Freire – A Educação como prática da Liberdade, 50 anos depois – a que acabara de assistir, organizado por um dos mais dinâmicos e atentos centros de formação de professores que conheço (o Centro de Formação de Escolas António Sérgio) veio renovar em mim um pouco da esperança perdida nos últimos anos. De todas as temáticas ali abordadas, destaco as duas que considero fundamentais para a prática profissional docente no séc. XXI, a saber:
1 – A necessidade premente de mudar o paradigma da educação bancária para um paradigma de educação libertadora ou crítica;
2 – A reconsciencialização de que a escola pública é, por natureza, heterogénea e marcada em todos os seus aspetos pela diversidade.
Desde o momento em que iniciei a atividade profissional docente, no já distante ano letivo de 1991/1992, tenho lutado interior e exteriormente contra esta educação bancária, conservadora e obsoleta, procurando que a sala de aula reflita o mundo real e que a minha disciplina – Português – ligue a escola à vida. Sou apologista de uma prática profissional libertadora e criativa, que emancipe os alunos e os prepare para o confronto com a realidade dentro e fora da escola. Todavia, todos (aqueles que ensinam) sabemos o peso da máquina educativa, desde a obrigatoriedade avaliativa dos dois testes por período – imposta quase por decreto – até à guilhotina do exame nacional. Ora, perante este contexto generalizado, uma educação crítica e virada para a libertação do indivíduo – visando a sua plena realização pessoal – vem colidir de frente com aquilo que a escola pública atual tem para dar. Há algumas exceções, alguns casos de sucesso, um ou outro oásis no meio do deserto educativo nacional. Porém, a maioria das nossas escolas públicas é incapaz de questionar o sistema instituído. E sem querer defender qualquer tipo de teoria da conspiração, pergunto-me: interessará aos que detêm o poder que haja verdadeiramente cidadãos livres, reflexivos e críticos?
Uma vez que o sistema educativo sofre de um daltonismo preocupante, brindando-nos com uma teorização impossível de transpor para a realidade e incapaz de atender ao arco-íris sociocultural dento de cada sala, encarar trinta alunos como se fossem todos iguais está a matar a possibilidade de criarmos seres emancipados, reflexivos e críticos. Descura-se a sua individualidade dentro da diversidade, ignora-se a sua cultura e a sua essência. O peso da estrutura organizacional obriga-nos a lidar com trinta indivíduos diferentes como se fossem um só, utilizando um currículo de tamanho único para todos. Ora, sendo toda a educação um ato político, e existindo esta fortíssima simbiose entre a decisão educativa e a decisão política, como poderemos nós, professores – meros joguetes neste complexo tabuleiro – mudar o estado da arte? Se aquilo que pretendemos for tornar a educação libertadora, como consegui-lo? São estas as questões que deveriam constituir a ordem de trabalhos nas reuniões de professores deste país.
Pela parte que me toca, vou introduzindo diariamente alguns pregos na engrenagem de modo a refrescar a minha prática profissional num quotidiano de alunos viciados em tecnologia (quantas vezes o seu melhor vício). E ao mesmo tempo procuro deixar de ser uma mera transmissora de matérias para testes e exames para passar a ser uma orientadora de conteúdos para a vida. SIM! Ainda que nos tenham querido apagar nove anos, quatro meses e dois dias de prática profissional, os bons professores de Portugal continuarão a ajudar os seus alunos a serem felizes e capazes de metaforizar as suas próprias vidas.