Em véspera de início de um novo ano letivo, são já vinte e duas horas e, enquanto as pessoas normais se preparam para descansar no sofá, eu estou sentada à secretaria a preparar a minha primeira aula. Quero deixar uma marca no primeiro dia. Quero fazê-los pensar… Porque a escola está tão enclausurada em regulamentos e programas e grelhas que o espaço para a criatividade ficou drasticamente reduzido. A não ser que não tenhamos desistido ainda. E eu ainda não desisti.
Assim, sendo necessário, importante e obrigatório fazer um teste de diagnóstico, decidi que amanhã às oito, entre outros conteúdos, irei rever um pouco da gramática do Português. E estou a pensar escrever no quadro, em letras gordas, a seguinte frase: O meu namorado mordeu um cão. Comecei mesmo a preparar algumas das questões que lhes vou colocar; qual a função sintática de o meu namorado será certamente uma delas. Alguns alunos irão fitar-me, perplexos. Depois olharão para a frase gritada no quadro, em letras gordas e poderão mesmo rir-se dela. Ou de mim. Outros poderão não compreender o que eu pretendo com esta frase. Ou com a pergunta. Haverá um ou outro aluno convencido de que me enganei e tentará corrigir-me: a stora enganou-se… Explicar-lhe-ei que não me enganei. Que pretendo apenas que imaginem o meu namorado a morder um cão, pode mesmo ser o cão deles se o tiverem; em seguida, pedir-lhes-ei que me digam qual a função sintática desempenhada na frase pela expressão o meu namorado. Parece simples. Pelo menos para mim. Para eles, nem tanto.
Ao longo da aula, um outro aluno irá de certeza perguntar-me: Ó Stora, este ano vamos fazer muitos debates? Sim, vamos – responderei eu, cheia de boa vontade. E podem mesmo escolher o tema, acrescentarei. E disponibilizarei meia aula para a escolha do tema, outra meia aula para a preparação e uma aula inteira para o debate, dir-lhes-ei. Tudo junto perfará duas aulas. Uma loucura, portanto, quando o programa não nos dá tréguas. São trinta e um alunos. E quererão falar todos. E ao mesmo tempo. A meio do debate, já estarei mais do que arrependida mas complacente, não desistirei. É sempre assim. Por mais que lhes explique as regras de um bom debate, cairão em saco roto. Falarão uns por cima dos outros, atropelar-se-ão. Copiarão e repetirão as mesmas ideias. Poucas. Pobres. Stora, não tenho mais nada a dizer. O meu colega já disse tudo… Não, o teu colega não disse tudo! – responderei. Na verdade, o teu colega não disse nada! – acrescentarei. Os teus colegas debitaram e repetiram apenas ideias vazias, desprovidas de análise, de reflexão, de espírito crítico, de estudo, de pesquisa, direi já irritada. Porque o debate não incidiu sobre o campeonato de futebol. Nem sobre o último Love on Top. Muito menos sobre cantoras norte-americanas da moda ou sobre gente que joga à bola. Não. Discutiremos por exemplo de que forma a categorização que o Padre António Vieira faz dos peixes no Sermão de Santo António reflete a realidade de hoje. E tanto ficará por dizer. Por analisar. Por criticar. Por relacionar. Por inventar. Para além do Polvo…
Daqui a algumas aulas, certamente ouvirei: Stora, o que são recursos estilísticos? Eu, armada com toda a energia necessária para missões impossíveis, explicarei repetidamente, exemplificarei, voltarei a explicar e a exemplificar e, por fim, convencida de que terão entendido ao menos em que consiste uma simples enumeração, pedir-lhes-ei que me ofereçam um bonito exemplo. A confirmar que a minha explicação surtiu efeito, terei uma ou outra resposta como esta: O João matou a mãe, o pai e o cão. Calar-me-ei. Depois desatarei provavelmente a rir. Sim, e a rir bem alto porque nas minhas aulas o riso nunca foi nem será um fóssil. E dar-lhe-ei os parabéns. Afinal, fizeram uma enumeração…
Na escola de hoje, pensa-se cada vez menos. Nós, os professores somos meros funcionários, rotinados para fazer funcionar a burocracia dos papéis, controlados por um relógio que se agita de quarenta e cinco em quarenta e cinco minutos, sufocados por uma longa lista de conteúdos, metas e/ou competências que soam bem mas são difíceis de cumprir. A criatividade, que deveria ser a matéria-prima principal no dia a dia de um professor, é usada como um condimento raro num prato gourmet ou como uma roupa especial usada em dia de batizado. Aos alunos pede-se sobretudo que estudem e treinem o que porventura poderá sair no próximo exame. Sobra, a nós e a eles, pouco ou nenhum tempo para criar, pensar, refletir, imaginar. Muito menos para sonhar.
A escola de hoje, garanto-vos, quase não deixa espaço para a criatividade. Esta tornou-se uma raridade. Diria mesmo que morreu. Sobrevive apenas na alma daqueles poucos professores que também ainda não morreram.