Há menos de cem anos, a maioria das mulheres eram educadas para serem boas esposas, boas mães, boas donas de casa. Algumas dessas mulheres trabalhavam, mas quando casavam deixavam de o fazer, dependendo financeiramente dos seus maridos. Outras ainda, continuavam a trabalhar, com autorização dos mesmos e entregando-lhes o ordenado ao final do mês.
Os homens, por sua vez, tinham como missão prioritária prepararem-se para ganhar a vida, ter um trabalho, ser uma fonte de sustento para a futura família, e resolver todos os problemas.
O casamento era “sagrado”, as relações “extra”, a maior parte das vezes, negadas por ambas as partes, os maus tratos psicológicos e físicos escondidos, os filhos eram educados conforme se podia, alguns com violência atrás de violência, mas ninguém sabia o que significava a expressão “marcas profundas” e a felicidade algo a deslumbrar de quando em vez num horizonte longínquo.
O amor era “algo” que vinha depois. Ou não! Depois do casamento, depois dos filhos, depois da família, depois do trabalho, depois do depois. A guerra ditou que o mais importante era a sobrevivência, não as paixões ou o amor.
Todos sabiam qual o seu papel: os homens trabalhavam e traziam dinheiro para casa, as mulheres cuidavam deles, ainda que não o merecessem, os filhos obedeciam e calavam, pois já sabiam o que lhes esperava se não o fizessem.
Quem falava de amor e dizia “amo-te”? As musicas, os livros, o cinema, falavam dele e as pessoas iam vivendo acreditando que ele existia. Nem que fosse apenas para os outros. Mas será que o sentiam e que o viviam? Acredito que sim, alguns sim! Muitos outros, não. Mas, como a porta de saída, em algumas situações, dava para debaixo da ponte, escolhiam ficar do lado de dentro, ainda que a tempestade fosse maior do que do lado de fora.
Mulheres com quatro e cinco filhos não se separavam. Aguentavam! O “caso” havia de passar! As marcas no corpo e na mente também! O teto, os filhos e a sobrevivência eram prioridade. E que sofrida prioridade, apenas um pouco menos sofrida quando percebiam que também as mães, as tias e as primas o faziam em nome da família e delas próprias.
E existiam realidades familiares em que nada disto acontecia? Sim, existiam, mas as outras, segundo a minha experiência acompanhando pessoas de ambos os sexos na faixa etária dos cinquenta ou mais anos, dita-me que eram em muito maior numero.
Cem anos depois, as mulheres estão nas universidades, são independentes, estão no topo das hierarquias empresarias, trabalham tanto ou mais que os homens e ganham quase o mesmo que eles. As adolescentes são educadas pelos seus pais para terem uma carreira promissora, independência económica, sucesso, de preferência muito. Os adolescentes idem aspas. E a pressão pode ser tão grande quanto a possibilidade de os filhos serem vistos como a extensão dos próprios pais.
Eles continuam a ser formatados para resolver problemas, para não mostrar fragilidades, para serem fortes e corajosos, de preferência com muitos músculos. Elas para terem a silhueta, o rosto e o cabelo perfeitos.
Ambos continuam a sofrer pressões para casar e ter filhos.
Mais do que nunca a imagem, o poder, o dinheiro, o sucesso são o mais importante.
Mas a grande diferença é que a felicidade e o amor, outrora relegados para segunda, senão, centésima prioridade, “dançam” neste “palco” que é a vida, uma música que todos querem entender e “dançar” mas que poucos entendem e conseguem “dançar”. Por isso, decidem “desligar” a música e parar de “dançar” mesmo quando esta ainda está no início.
O casamento sagrado parece ter sido substituído pela relação “vamos ver o que dá”, o amor como algo que se corre sempre atrás e que foge a todo o instante, a felicidade como um estado de “dolce fare niente” ao qual se acede mediante a compra da maior quantidade possível de coisas que façam ou não falta, os envolvimentos extra, como uma situação que não tem assim tanta importância pois até pode ser que revitalize a relação, o pensar em si, e em si, e em si, e o “ama-te”, como o dogma que faz mil maravilhas.
Homens e mulheres são livres de se juntarem, de casarem, de terem os filhos que entenderem, de baterem com a porta vendo o outro lado da ponte.
Quase todos sabem que não devem permitir maus tratos quaisquer que eles sejam e que podem e devem apresentar queixa porque os agressores tem que ser punidos.
Os pais já estão mais conscientes e informados de que a violência, qualquer que el seja, deixa marcas profundas nos seus filhos e influência determinantemente as suas relações no futuro.
Os modelos familiares são os mais diversos e a progressiva aceitação dos mesmos uma inequívoca realidade social.
Os papeis deixaram de ser diferentes e, em alguns casos, ninguém sabe bem qual é o seu na relação, pois o não querer depender no que quer que seja do outro, leva ao “fundamentalismo da independência”, e a que o natural “eu preciso de ti”, seja colocado dentro de uma caixa e deitado ao mar.
Fala-se, escreve-se, grita-se aos quatro ventos que o amor é o mais importante! Que ouvir “amo-te” é o mais importante, que sentir-se amado é o mais importante, e que tudo devemos fazer para que isso aconteça.
Nos filmes, nos livros, nas telenovelas, nas músicas, a palavra Amor e Felicidade é dita e ouvida por milhões para milhões.
E nem mesmo assim, cem ou mais anos volvidos, com todas as voltas que o mundo deu e o “tsunanimi” que as mentalidades sofreram, as pessoas se sentem mais amadas ou mais felizes. Pelo contrário, muitas delas questionam-se porque seguem e fazem tudo “à risca” para o serem, e sentem um vazio ainda maior dentro delas.
Não percebem porque não têm as relações que querem, os amores que querem, porque não se sentem amadas nem conseguem amar, embora lhes digam que as amam e se esforcem por amar.
Não percebem porque têm um espantoso T5, um potente carro, porque se encontram dentro de um luxuoso iate, mas no meio do nada, sem saber para onde ir.
Não percebem porque dão tudo e recebem tão pouco.
Não percebem porque permanecem em relações sem qualquer sentido, em relações que lhes fazem mal, mas que por algum razão sentem precisar para continuar a respirar.
Não percebem porque não conseguem ser mais vezes mais felizes.
Hoje podem dizer e fazer quase tudo e ir atrás desse amor ou felicidade. Mas será que o fazem? E fazem-no bem? E mesmo que o façam: Será que esse Amor e Felicidade idealizadas e “empacotadas” os fazem sentir a vida correr nas veias?
Que sofrimento e dor sentem? Maior ou menor que os de há cinquenta ou cem anos atrás? Será que o conformismo, abnegação, negação, aceitação não continuam presentes, ainda que as pessoas não precisem do dinheiro do outro para nada?
Em que medida a possibilidade de viver um amor e uma felicidade idealizados que existe apenas na cabeça de quem o fantasia, potenciado por tudo o que é comunicação e que entra pelos poros a cada instante, não é causador de uma nova dor e sofrimentos nunca antes sentidos, porque as coisas eram o que eram e não o que idealizavam ser?
Será que não precisamos de colocar os pés na terra e perceber que viemos do tempo do Desamor e da infelicidade como algo aceitável, para o tempo do Amor e da felicidade a todo o custo, como se de alguma forma esta geração tentasse redimir e fazer uma espécie de “catarze” do suportado pelas gerações anteriores?
Parece-me sim, que muitos correm atrás de um ideal de Amor e de relação que só existe na sua cabeça, que não é “terreno” nem humano, e muito menos imperfeito. Que o fazem menos bem, pois tentam mais que tudo moldar o outro à sua imagem e semelhança. Ou será à imagem e semelhança do tido como companheiro ideal? E, como os vários “pacotes” de felicidade propostos são mais que muitos, o tempo vai passando, e um dia olham para atrás e percebem que afinal a felicidade não se encontrava em nenhum deles, nem do lado de fora, mas dentro de si, num lugar chamado gratidão ao lado de um jardim chamado Amor.
Não sei se sentem uma dor maior que sentiam os que viveram há cem anos atrás, porque não se conseguem comparar dores, mas que pensam mais nela, pensam. Os modelos idealizados fazem com que isso aconteça.
Mais do que conformismo, abnegação ou submissão, paradoxalmente, existe dependência: Dependência emocional do Amor e da Felicidade idealizados.
As pessoas estão tão ávidas de serem felizes e de viverem um grande amor, que aceitam viver histórias senão semelhantes às do passado, com contornos muito parecidos. Não dependem financeiramente, mas dependem emocionalmente de um ideal que a sociedade criou de que existem histórias de Amor perfeitas e uma Felicidade dos Deuses, ambos atingíveis mediante o cumprimento de tramites que todos procuram e ninguém encontra.
Mais do que colocarmos os pés em solo bem firme, parece-me que precisamos todos de refletir se os ideais protagonizados nos fazem bem, e se não nos fazem, perguntarmo-nos porquê e descobrir novos rumos que conduzam à aceitação de um Amor e felicidade terrenos!
Pressupõe especialmente, aceitação de quem é e da sua própria imperfeição, aceitação da imperfeição dos outros, aceitação de que o Amor é também imperfeito, e é sobretudo querer-se, querer bem, e sentir-se querido, aceitação de que a felicidade está onde quer que você a consiga ver e sentir, e se se conseguir sentir grato, nesse mesmo momento, ela estará lá… a sorrir para si!
Não deixe de sonhar, nem de amar, nem de lutar para se sentir mais vezes mais feliz, mas…
Pare de andar atrás de coisas que não existem!