Esqueçam as dores de parir (seja por fecho-éclair, como em todos os meus quatro filhos, ou por parto natural, com todas as episiotomias a que têm direito, quer queiram, quer não), dêem de barato as infindáveis noites brancas na companhia desesperante e solitária das cólicas do recém-nascido e, sim, podem não acreditar no que vos vou confessar: mas vai ser possível sentir saudades das mamadas (ao peito, ou no biberão) em aritméticos intervalos de três em três horas (quando não é de hora em hora).
Vão por mim: há angústias piores que o primeiro febrão, que o rol de viroses, bronquiolites, ou as milhentas variedades de doenças de pintas que hão-de pontilhar os dias de todos os pais do mundo (a última lá de casa foi a ‘pés-mãos-boca’ — e, quanto ao desinspirado nome desta doença, temos lá em casa a teoria de que os médicos que a descreveram e a imortalizaram nos anais da ciência já estavam cansados e já nem se deram ao trabalho de a baptizar: tiveram um burn-out e esgotaram a sua criatividade, com o místico e misterioso nome que deram à ‘quinta doença’).
É que vai haver um belo dia em que vão ter que falar com os vossos filhos de sexo. E, lamento, não me venham dizer que hoje em dia somos todos modernos, que não há assuntos tabus, que isso era no tempo da antiga senhora, e que lá em casa tudo se fala com as crianças, sem desconforto.
Podemos ter lido todos os gurus, frequentado aulas e workshops de parentalidade (fazemos tudo isso até eles terem um ano de idade), falado com a psicóloga, com a tia, a avó, a melhor amiga, ou mesmo com os nossos inimigos sobre o assunto — dê por onde der, esta conversa vai doer, e nenhum pai está preparado para a ter.
Aos 25 anos, quando tive nos braços a minha primogénita, alvitrei, logo na maternidade, que a maior dor de crescimento que teria enquanto mãe seria o momento de lhe comprar o primeiro soutien (e apressei-me a cheirar-lhe o cucuruto e a apertá-la, pedindo ao tempo que passasse a conta-gotas). Nenhum pai está preparado para ver o filho crescer à frente dos seus olhos. E o tempo, esse, é veloz — num ápice passaram-se 13 anos desde aquele dia de Nossa Senhora da Conceição, o antigo Dia da Mãe, em que me metamorfoseei de mulher para mãe. E, afinal, há pior, senhores, há bem pior do que ir comprar uma peça de lingerie para uma filha.
Foi há sensivelmente um ano, na consulta anual de rotina de saúde infantil, na prodigiosa unidade de saúde do parque, em Alvalade. O nosso avisado e despudorado médico de família — que é verdadeiramente muito mais do que um médico, é um amigo —, introduziu o tema, de chofre, com a nossa filha mais velha (então, mas, mas? Ai, quando todas as minhas angústias nestas consultas eram o perímetro cefálico anormalmente grande de todos os meus filhos!!!).
Na fracção de segundo seguinte ao “Carolina, então agora vamos falar de sexo?” o meu coração parou, e eu tive uma espécie de apoplexia que me induziu uma amnésia de tudo quanto mais se passou naquele gabinete (se o momento fosse adaptado a um desenho animado canalha, como todos aqueles impróprios que os meus filhos adoram ver no Cartoon Network, ter-se-ia assistido a um momento de combustão espontânea maternal). A miúda, que, de facto, estava com um corpanzil digno de o assunto ter vindo à baila, apesar da minha miopia galopante, se pudesse, também teria fugido do consultório. Foi tão mau para ela como para mim…
Quem me conhece na vida real — e não nesta cibernética, cheia de filtros doces e máscaras de perfeição —, sabe que me rio alto sem me importar com a papada, que falo que nem uma gralha debitando expressões antigas que os meus avós me ensinaram, que tenho poucos ou nenhuns filtros, que choro sem me importar que me achem fraca ou ridícula, que odeio os Caricas, a Toc-Toc e seus sucedâneos, apenas e tão-só pela sua pobreza melódica (vejo como um insulto à massa cinzenta incandescente que qualquer criança tem dentro da sua cabecita), e que no rol de coisas extraordinárias de que é feita a manta de retalhos da minha vida até aceitei participar numa grande reportagem escrita e televisiva sobre os portugueses e o sexo, já que, manifestamente, por ser esta ave rara de estar a criar quatro filhos, só posso ser uma de três, de acordo com os estereótipos vigentes: alguém que não tem televisão, uma grande maluca, ou uma mera parideira, alguém que, por fervorosos motivos, não acredita em métodos anticoncepcionais. Acontece que não sou nenhuma delas, ou que sou uma mistura das três, mas a verdade é que sou uma mãe que ficou à rasca quando o médico de família decidiu falar de sexo com a sua filha aos 12 anos.
E a canção de Elis Regina — “Como os nossos pais”, que fez parte do meu cancioneiro de infância, com o Barata Moura e o seu fungagá —, faz sentido hoje como fez há quarenta anos: ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais…
Quando eu fiz 12 anos, a minha mãe ofereceu-me uma Barbie (sim, ainda brincava com bonecas nessa idade; tive uma longa infância de fantasia e complexos corporais induzidos pela boneca de formas impossíveis que, entretanto, já tem várias versões corporais mais aproximadas da realidade, e uma paleta de cores de cabelo mais abrangente que o loiro platinado) e dois livros de educação sexual: um dos 9 aos 12 anos e o outro dos 13 aos 16.
Foi assim que a minha mãe falou comigo sobre sexo.
Através de dois livros produzidos e editados nos anos 70, nos quais a educação sexual e a reprodução humana eram materializados nas aventuras de um casal hippie, o seu parzinho de filhos, muitas golas altas e calças de bombazine de pata de elefante à mistura.
Isto quando não andavam nus, a passear-se por aquelas páginas, porque naqueles dois livros havia nudez explícita, sem filtro ou censura.
Era o tempo do amor livre e do fim de todos os tabus. Mas a verdade é que já estávamos a arrancar a década de 90, e essa utopia estava bem arrumada, com a ascensão dos yuppies.
Nunca um livro motivou tanta curiosidade. A certa altura, aqueles dois volumes motivaram romarias de amigas e colegas de escola ao meu quarto, sempre de esguelha e de porta fechada, com o coração aos pulos, para conferir as páginas centrais, que eram dedicadas a uma fotografia do dito casal — hoje, certamente, octogenários — a fazer amor. A narrativa e a novela fotográfica prosseguia depois, até às últimas páginas, viajando pelas transformações do corpo da mãe, grávida. Nas últimas folhas podíamos conferir um parto vaginal, caindo por terra a história das cegonhas.
Apesar do conteúdo explícito, este método de introdução à sexualidade não me deixou traumas ou recalcamentos. E no limite foi um avanço face à educação sexual que a minha mãe teve — que foi nenhuma, interna num colégio católico.
Fez o melhor que podia, mas nunca a minha mãe (e muito menos o meu pai, na sua artística ausência) me falou na primeira pessoa sobre sexo, sobre a sua importância na vida de uma mulher, sobre os séculos de subjugação e a desejável paridade sexual entre géneros (lamento, uma mulher ou uma adolescente continuam a ser galdérias se tiverem muitos namorados; e os rapazes continuam a ser na generalidade acarinhados pelos seus feitos e conquistas). Também não me preparou, ou pelo menos me pôs de sobreaviso sobre as mudanças e transformações físicas que estavam prestes a acontecer, quando decidiu oferecer-me literatura temática, evitando assim o desconforto que a conversa teria tido para si (e só fomos comprar o primeiro soutien quando eu tinha 14 anos -— eu sei que lhe doía também eu ter crescido; e sei que ainda hoje me vê pequenina, apesar de sempre me ter chamado Lolita, vaticinando que me transformaria numa poderosa Afrodite).
Falar de sexo ainda é tabu, ainda é mal-visto, inclusive e estranhamente entre pessoas adultas. Nunca falei de sexo entre amigas, sei lá se são felizes na cama, se têm orgasmos, se têm amantes, fantasias malucas, se dormem com este e com aquele — a minha vida não é um episódio de “O Sexo e a Cidade” —, mas, por exemplo, já passámos almoços e tardes inteiras a cortar na casaca de muito boa gente, o que é um assunto bem menos profícuo, interessante e construtivo para passar um serão entre gente que nos faz e quer bem.
E se é assim entre adultos, quanto mais na hora de abordá-lo com os nossos filhos… Podemos-lhes falar do sistema reprodutivo, como cientistas, podemos até, em sociedade, brincar às polémicas, discutir se os manuais escolares devem introduzir a possibilidade do aborto na matéria do sistema reprodutivo, mas ainda não abordamos o assunto no seu âmago: o papel e a importância do prazer sexual e da sexualidade como aquilo que são, verdadeiramente, nas nossas vidas: uma coisa tão natural e tão necessária como comer, respirar, pôr uma perna à frente da outra para seguir caminho.
Ando às cegas, não sei, honestamente, como é que consigo aceitar que os meus filhos são seres sexuais desde há muito. Cabe-me a mim romper o ciclo. A primeira tentativa não correu assim tão bem (desculpa, filhita test-drive: nunca tens a melhor versão de mim enquanto mãe). Não comprei um livro, fiquei em pânico no consultório e, depois, para me redimir, tentei falar sobre o assunto e fui proibida pela minha própria filha — é que aos 13 anos, mais coisa menos coisa, a idade em que se tem esta primeira e por vezes última conversa, os pais sofrem para aceitar que os seus filhos são seres sexuais, e os filhos descobrem que os pais também o são, e têm uma reacção física de repulsa e nojo.
Tenho, felizmente, mais três tentativas para falar de sexo com os meus filhos.
Bom ano!