Pode parecer altamente suspeito, mas sempre que chagamos a esta época do ano, assalta-me o olhar laboral em torno do passado recente. Vejo o que fiz e, sobretudo, o que não fiz, sendo tolhido por todo um peso de séculos de estruturas de pensamento e de comportamento.
A tensão parece ser uma realidade que vem do mais distante passado, quase de um génesis criador do que somos. E essa tensão afirma-se, em primeiro lugar, num olhar para o trabalho como pena, ideia colhida de toda a tradição antiga que desagua na leitura cristã da chamada “queda” de Adão e Eva, o Pecado Original, e que nos remete para uma visão negativa do trabalho. Como consequência, temos um anseio culturalmente expresso em muitos adágios populares: desejamos “viver à sombra da bananeira”, ou “viver dos rendimentos”.
Mas essa tensão tem ainda um outro ponto forte, uma outra componente da nossa mentalidade: o trabalho como dever, vindo de uma noção do labor como continuação da própria criação divina – na versão laicizada o dever do trabalho é componente fundamental para a participação no progresso da coisa pública. Se, por um lado, não trabalhar é o desejo e a imagem da riqueza, por outro, o trabalho é uma implicação da própria condição humana.
Mas mais, a imagem fundante da noção de trabalho estava lançada nas nossas mentes desde a mais profunda visão do mundo, verdadeira cosmovisão que o homem teria de imitar: se em seis dias o Criador “trabalhou” na sua obra e apenas ao sétimo descansou, a humanidade obriga-se a cumprir essa imagem proletária no colectivo que no trabalho busca uma remissão.
Mas esta é a visão dos monoteísmos que democratizaram tudo, até o sofrimento pelo trabalho. Para os latinos, tal como para os gregos, com uma cultura dominada pelas elites que se alimentavam à base de um sistema esclavagista que lhe possibilitava um tempo livre e uma riqueza invejáveis, a realidade seria outra. E essa realidade chega-nos através de um fóssil-director, a palavra negócio.
De facto, tal como nos mostra o jogo etimológico usado no título deste texto, a nossa cultura tem prezado a distinção entre os tempos de ócio e, o que os nega, os de negócio. Contudo, contrariamente à visão bíblica, podemos dizer que, para os latinos, a base era o ócio – é que se depreenderia do facto de ser esse o conceito base sobre o qual se forma a sua negação, o neg+ócio.
Para nós, fruto de uma cultura cristã milenar, a base é, claramente, o “negócio”, a negação do “ócio”: o ócio é aquilo que se almeja e se atinge em alguns momentos, nos intervalos possíveis do negócio. E, aqui, o “negócio” não é o negociar no sentido que o usamos hoje: “negócio” é, acima de tudo, negar o ócio, o lazer; isto é, negar a possibilidade de estar quieto.
O drama desta constatação encontra-se, possivelmente, na forma como a necessidade cultural e civilizacional de nos criar como máquinas de trabalho repetitivo nos veio limitar muitas outras capacidades, quem sabe se as mais humanas. De facto, várias tradições de análise cultural identificaram directamente a possibilidade da criação cultural e religiosa com a existência de tempos de ócio, como se de algo acessório à natureza humana se tratasse e tivesse de ser buscado, criado.
De facto, talvez a cultura e a religião não estejam no pacote mais imprescindível da sobrevivência da espécie, mas cada vez mais se afirma a criação e a fruição das construções mentais como o grande diferenciador face aos restantes seres que habitam este planeta.
Quão importante é na nossa sociedade a chamada realização individual, quase coincidente com a profissional, sendo que o trabalho quase sempre coincide com rotina naquilo que ela tem de pior e de castrador da inovação e da realização pela diferença. A suposta gestão dos prazeres do dia-a-dia passa pelo inevitável local de trabalho, pelos desafios e pela afirmação nesse constante mundo do “negócio”, do trabalho, numa concepção de quase «serviço profissional obrigatório» a que é impossível fugir. Rotineiro, castrador, criador de insatisfação, mas obrigatório até no tempo mental que nos ocupa, reduzindo, quantas vezes, o prazer a um arrastar dos dias.
Mas, ao mesmo tempo, criando ainda mais ambiguidades, quantas vezes em fim de férias não sentimos vontade de voltar às “hostilidades”; um “vamos a eles!”. Precisamos de não descansar de mais, como se isso não nos realizasse. Longe vão as utopias em que as sociedades evoluídas deixariam de trabalhar em virtude de uma sociedade de máquinas que nos fariam tudo…
Se em tempos ainda não muito recuados alguém afirmou que a religião era o ópio do povo, cada vez mais devemos baralhar esta afirmação de Marx com a cada vez mais forte necessidade de produzir e de nos afirmarmos por esse meio: o trabalho é o ópio do povo.
A uma religiosidade que supostamente anulava a individualidade, a capacidade da afirmação das capacidades do homem (como afirmava Nietzsche), sucedeu uma outra forma de o indivíduo se encaixar no mundo. A grande constante mantém o lugar deixado para o ócio: o periférico que tem lugar umas escassas vezes por ano …
Ora, parece que ainda não foi desta que o ócio passou a ser a base de tudo.