A minha rua é uma rua como outra qualquer. Uma rua ainda do modelo de rua em que as pessoas se conhecem. Fazem “vida de bairro”. De tal forma a fazem que até um supermercado com marca da SONAE ganha essa vida comunitária e já todos os funcionários se integraram nos rituais antigos de perguntar “como vai?”.
É assim a Algés deste ano de 2016, já com uma população muito diferente do que terá sido há uns trinta anos, antes de se diversificarem as gentes com as várias levas de migrantes que aqui aportaram em busca de melhores dias.
À frente da minha porta, um café. Mais um dos muitos cafés deste bairro. Mas este é o meu café de todos os rituais – da manhã, da noite. O dito café tem um nome que augura comunidade: Café União. É como a rua. Imagem dela, espelho por vezes potenciado pelos jogos de futebol que lá reúnem toda a “fauna” desta típica rua portuguesa.
Dizemos em jeito de saudosismo que dos tempos das “muitas e desvairadas gentes” de Damião de Gois, já pouco parece sobreviver na metrópole outrora mercantil. Mas não. O café da minha rua é a imagem que os cronistas do século XVI davam da lisboa ribeirinha, dos navegadores, dos comerciantes vindos de todas as partes do mundo conhecido.
Na minha rua somos um Mundo. Por baixo da janela da minha sala, temos uma mercearia onde nos atende um jovem aparentemente nepalês, que todas as noites vê filmes indianos, na profusão de cores e de sons tipicamente de Bollywood, e que ostenta um buda dourado por cima do armário imediatamente ao lado da porta. Ao lado, na oficina, podemos ser atendidos por um mecânico brasileiro. E a lista poderia continuar, passando, mesmo de frente, por um outro café que apresenta aos transeuntes um nome completamente indecifrável que mais não é que a mais alta montanha indiana.
Mas vou entrar no café, no meu Café União. Depois de ter deixado para trás os orientais da mercearia, o meu olhar esbarra com um simpático chinês que bebe imperial e come caracóis, o que me obriga a rever as definições de aculturação, de multi e de inter-culturalidade, as ferramentas da integração cultural…
Ao lado, na mesa junto ao televisor, um casal composto por duas nacionalidades. Um aparentemente português de nascimento convive com a esposa e a filha, todos a trocar brincadeiras em torno da língua da mãe. Uns sabem umas palavritas, outros inventam-nas, e a brincadeira instala-se para lá da mesa luso-ucraniana.
Um dos donos do café, sempre solícito, acolhe o pequeno filho que entra pela porta. Os sorrisos imediatos, a emoção paternal de querer acolher bem o herdeiro, ajuda a perceber pelo jogo das sibilantes e das nasais que, tal como quase todos os outros, também ele foi migrante, vindo de terras de certeza acima do Douro.
Pelo meio, já sem tema de conversa, tão desgastado pela sapiência futebolística de um parceiro de mesa, claramente nascido nos reinos dos algarves, decerto nos de aquém-mar, um angolano tenta concentrar-se no corisco do televisor que teima em não lhe mostrar golo algum!
Há menos de 100 anos, nem um arruamento havia junto onde agora toda esta cena se passa. Os únicos verdadeiramente autóctones deste lugar seriam umas quantas cabras e carneiros que por aqui pastavam, sem que os seus pastores alguma vez tivessem imaginado que tudo o que eu disse pudesse, sequer, ter lugar a não ser na Babel que a Bíblia tanto demonizou.
Sim, pois, e na minha rua há duas Igrejas, para além de uma associação da comunidade chinesa. Os membros das igrejas reúnem mais regularmente, com os ritmos que implicam o normal culto cristão. A comunidade chinesa é mais reservada. Mas, mesmo assim, é uma experiência de multiculturalidade ver os jovens orientais com a sua roupa domingueira dos dias de reunião a entrar no café e a pedir galões, sandes de panado, e tudo o mais de imagem e prova de lusitanidade.
As igrejas, sendo evangélicas, congregam muitos brasileiros. Já foram mais. Numa delas, os cabo-verdianos são em maior número e não abdicam, nem no Verão, das roupas que marcam a sua origem mais puritana que obriga a um dress code.
Voltando ao café e ao jogo com que me cruzei ao cumprir o ritual do café da noite. E se fosse golo? em que línguas e sotaques gritariam? Esperei um pouco, mas nada, nem o Ronaldo lhes fez o gosto. Talvez seja necessário recorrer às fés de cada um. De tão diferentes, todos apenas queriam um golito…
Irónico este mundo. Pedagogicamente muito educativo, se alguma coisa se quiser aprender. Foram-se, assim como devem ter vindo. Pouco a pouco, ao ritmo de mais uma imperial, levantaram-se, conversaram, e o dia foi terminando. Uns, rua abaixo, outros rua acima. Todos iguais, a andar, falando nas suas línguas e com os seus sotaques. Talvez palrando um idioma que é o da vizinhança, que os levou a estar juntos a ver um jogo de futebol.
É saudável quando a diversidade deixa de ser sentida e passa a ser parte da paisagem. Pouco a pouco, a Lisboa ribeirinha volta a ser a de Damião de Góis, a de “muitas e desvairadas gentes”.
São todos da mesma rua.
Da minha.
Do mundo.