A minha mais velha interpelou-me, a caminho da escola, de manhã bem cedo, no habitáculo do (auto)carro da família com lotação esgotada de crianças e chassis de carrinhos de bebé: “Qual é a diferença entre a direita e a esquerda?”
Ora bolas. Meu pobre coração.
Dêem-me quadrigémios recém-nascidos. Troco por uma pré-adolescente a tentar fazer sentido ao mundo.
Com a puberdade à porta, que já tinha sido previamente escancarada com duas gravidezes em pouco mais de 18 meses, confesso que tinha posto trancas reforçadas na dita e estava mais à espera do: “Mãe, como é que se fazem os bebés?”, ou mesmo do: “Mãe, estou apaixonada, quero morrer!”
Mas não.
A rádio-jornal seguia em surdina naquela manhã e a campanha para as Legislativas estava em contagem decrescente. Passos e o Costa digladiavam-se em debates na televisão e pela estrada fora deste nosso lindo Portugal ao sabor de polls diárias da Pitagórica [os putos adoraram este nome da empresa de sondagens], e os Gato Fedorento ridicularizavam as gafes da campanha, pela hora do jantar, ensinando aos meus filhos, em prime time, uma palavra difícil, com o ‘concatena, filho, concatena…”
E depois, claro, sai-me pela culatra, sem aviso: “Qual é a diferença entre a esquerda e a direita?”
Obrigadinha, pela parte que me toca.
É um crescendo para uma adolescência que será, decerto, muito comprida. Acredito que quando chegar ao quarto filho já tenho as respostas prontas, debaixo da língua, e vou fazer brilharete.
Cá em casa não cabemos na maioria dos carros (e eu, em particular, também não consigo enfiar-me nos tamanhos 44 de calça das grandes cadeias de retalho) e também arrasamos o estereótipo da família numerosa.
Lá em casa um é de direita e o outro é de esquerda. Domingo é dia santo para votar, e não para ir à missa (mesmo que a mesa de voto seja nas traseiras da igreja). Praticamos a contraceção e o planeamento familiar, mas, aquando da inesperada quarta gravidez, que baralhou os planos certinhos que tínhamos para um trio-maravilha de filhos, separados por cinco anos de diferença entre si, a certeza de que uma vida é uma vida desde o primeiro dia da conceção sobrepôs-se a toda a ansiedade pelo futuro e à inquietação e nervoso miudinho de trazermos mais uma criança para nascer num país intervencionado e resgatado por credores internacionais, amputado por uma crise grutesca, minado por uma desesperança que alastrava por toda a parte, mesmo ao nosso lado, tão perto de nós.
Inesperada e irresponsavelmente, duplicámos o número de filhos durante esta crise brutal, pontilhada por taxas e taxinhas (não só as do IRS e do IMI, mas também as do desemprego e da emigração, que atingiram mais ou menos todas as famílias portuguesas, arrastando consigo pais, irmãos, primos, amigos,colegas).
Lutámos, sofremos, fomos piegas, morremos de medo (borrámo-nos mesmo), fizemos contas à vida, e depois lutámos mais, enfrentámos a crise pelos cornos, não houve oportunidades, houve o mais básico instinto de sobrevivência, e conseguimos (não teríamos conseguido sem o apoio do Estado Social e do Serviço Nacional de Saúde e, claro, da nossa família, que nunca permitiria que nada nos faltasse ao embarcar nesta família): estamos aqui para contar a história de como nos reinventámos e como conseguimos criar mais do que o triplo dos filhos de um casal português, e como agora não vamos poder ter descanso, para assegurar que os nossos filhos têm um futuro, e que esse futuro não está hipotecado e traçado à nascença.
Qual é a diferença entre a esquerda e a direita?
Pigarrear e aclarar a voz, procurar as melhores metáforas, adequar a linguagem a uma audiência infantil.
No decorrer dos últimos quatro anos fomos várias vezes para a rua, em protesto, em total desacordo com o rumo que o país tomava. Até o bonacheirão do cão esteve em frente ao Parlamento. O meu filho António, de seis anos, tem São Bento gravado na geografia da sua infância: ‘Mami, olha o Povo unido!” E eu, claro, direitosa, fico com os cabelos em pé, mas concedo a importância de, em tão tenra idade, ter despertado nos meus dois filhos mais velhos a sua consciência cívica e política.
Sabem quem é o Passos, sabem quem é o Portas, até sabem quem é a Cristas, que tem quatro filhos e fez a Lei das Rendas, reconhecem o Costa e o Seguro, o ex-prisioneiro 44, o Jerónimo e a Catarina. Não lhes escondemos nada — tentamos guiá-los pelo mundo, que nem sempre é cor-de-rosa ou como nas coreografias tontas dos Caricas e do Canal Panda. Talvez vejamos telejornais a mais e o Fórum da TSF não ajuda nada à confusão que o mundo se tornou, bombardeado de informação por todo o lado.
“Muitas coisas separam a esquerda e a direita”, expliquei à minha filha, tentando sair rapidamente do beco sem saída onde ela me tinha enfiado.
“A mãe é de direita e o pai é de esquerda. E amam-se terrivelmente. Percebes: ser de direita ou de esquerda não define quem nós somos, podemos ser, de quem gostamos ou antipatizamos. Há boas pessoas de direita e há boas pessoas de esquerda e há gente que não presta em ambos os lados. Dizem que os da Direita são betinhos e usam risco ao lado, e os de esquerda despenteados e pingões. É um disparate. Vais também ouvir que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço — não acredites, se fazes favor.”
Tentei pôr água na fervura, sendo simultaneamante vaga e concreta : “eles andam ali a insultar-se nos discursos e nos debates, mas tanto a esquerda como a direita defendem a liberdade, a dignidade das pessoas, os direitos que ninguém pode pôr em causa, porque estamos numa Democracia, e há uma Lei maior, que se chama Constituição, que todos têm de respeitar e defender. Andam ali às turras essencialmente na maneira como encaram o dinheiro e a economia, mas sabes que, infelizmente, acho que nem uns nem outros poderão fazer muito diferente.”
Acenou com a cabeça, e eu aproveitei para rematar: “O importante é ir votar. O importante é perceberes que não podes deixar os outros decidir por ti. Que o não te importares é que põe em causa os teus direitos. Os jovens não gostam de política, porque os políticos não falam para os jovens, nem falam para a maioria dos portugueses, mas é imprescindível tu saberes que podes ser a próxima primeira-ministra deste país e tens na tua mão e só na tua mão esse poder. É só quereres. Claro que dá trabalho. Claro que às vezes é chato. Mas precisamos de melhores políticos e a mãe conta contigo e com os teus irmãos — quer vocês sejam de esquerda ou de direita.”
“Mãe, eu acho que tu davas uma grande ministra!”
Abri-lhe a porta do carro, e encaixei a mochila pesada sobre os ombros: “Andor, Senhora Secretária de Estado da Juventude, põe-te a estudar. Ordens da Ministra dos Assuntos Familiares!”
No domingo seguinte, a última secção de voto da superfreguesia onde fomos recentemente e involuntariamente recenseados por via da obrigatoriedade de emissão do cartão de cidadão, pedaço de plástico que assassinou a mesa de voto que não mudáramos nunca, por inércia e por melancolia sufragista, estava deserta.
Nenhuns jovens faziam fila para votar naquela mesa de voto da populosa freguesia de Lisboa. Entrámos e saímos, despachámo-nos em menos de cinco minutos, dilatados por uma certa indecisão de onde pôr a cruz. Nas primeiras secções, com a população muito envelhecida, havia filas de caracol, pelos corredores. Mas na nossa: ninguém, um triste deserto de indiferença.
“Mãe, como é que o Costa pode ser primeiro-ministro se perdeu as eleições?”
“Mãe, quando é que o Cavaco se decide?”
“Mãe, o que é um Governo de Gestão?”
Ai.
(E agora, desculpem, tenho de acabar aqui e explicar o que são círculos uninominais e o método de Hondt)
Senhor Ministro da Educação (atual ou futuro): Que tal introduzir a disciplina de Educação para a Cidadania?
A mãe agradece. E o futuro de Portugal também.