Foi num dos últimos dias de calor. A esplanada estava vazia como se as pessoas já se tivessem desinteressado da paz ensolarada. O P e eu sentámo-nos, ele pediu um refresco de menta ao qual puseram uma sombrinha à laia de resort de Cancún. O meu café, pelo contrário, veio numa chávena ligeiramente rachada com o logótipo do fornecedor e trouxe à mesa a melancolia das grandes cidades. O P colocou os auriculares e desapareceu na leitura de qualquer coisa que guardara no seu iPad. Eu abri sem grande entusiasmo o livro que levara, a indolência da tarde dispersava a minha atenção.
A nossa presença na esplanada terá chamado a atenção de outros transeuntes para o verão tardio e logo se sentaram duas colegas que se queixavam de serem obrigadas a usar sapatos ortopédicos na clínica dentária onde trabalhavam, Não há pernas que aguentem saltos rasos, um casal estrangeiro que pediu tosto miste e céeevejas, um grupo de miúdos da escola secundária de volta das primeiras cervejas e das primeiras transgressões.
A tarde avançava e a árvore junto do quiosque ia sombreando a esplanada com os seus ramos tentaculares. O meu olhar entreteve-se a trepar por ela. Gostava de saber o nome das árvores, disse eu, interrompendo a leitura do P. Ele sorriu e informou-me de que há uma aplicação que identifica as árvores fotograficamente. Não sabia se era exatamente isso o que eu queria, A minha mãe conhece as árvores todas, respondi, sem eu própria perceber o que queria dizer com aquilo. Dantes, as pessoas viviam mais perto da Natureza, rematou o P, voltando ao seu iPad. Dependeria das pessoas, discordei sem grande convicção. As conversas com o P são muitas vezes inconsequentes. Isso agrada-me: estarmos um com o outro não exige que nos esforcemos.
Não dei logo conta dela. Na verdade, foi o comentário de um dos miúdos, Uau, topem-me aquele monumento, que me levou o olhar para uma das mesas que ficavam atrás do P, no fundo da esplanada, junto ao passeio. Era, de facto, uma bela mulher. Era, também, muito mais nova do que eu. Apercebi-me, nesse preciso momento, que se levantara uma brisa. De seguida, notei a desarrumação das cadeiras, as flores plásticas que enfeitavam as mesas, o barulho dos carros, a altura dos prédios, os passeios esconsos, E os dias sombrios não tardam, pensei, enervada. A alegre, preguiçosa e tolerante comunhão com o que me rodeava, que me mantivera até então afastada da leitura, deu lugar a um desconforto inexplicável.
Reconheci com surpresa o incómodo no estômago,a secura na boca, a inquietação das mãos, o desassossego do corpo. Instintivamente controlei a minha vontade de me ajeitar na cadeira, de virar com brusquidão as páginas do livro, de apertar o casaco, para que o P não se distraísse daquilo que o mantinha ausente. De soslaio, olhei novamente para a bela mulher. Mantinha a cabeça baixa, atenta ao telemóvel, mesmo quando o empregado lhe colocou sobre a mesa uma Coca-Cola e um croissant. Era evidente que ela se iria demorar por ali. Vamos embora, acabei por pedir, desajeitada, ao P. Já?, perguntou ele, surpreendido. Está frio, repliquei.
Voltámos para casa sem que o P tivesse visto a bela mulher, o que me perturbou ainda mais. À vergonha que sentia, sobreveio a tristeza e a solidão. Não namorávamos há muito tempo, mas eu não tinha dúvidas de que estávamos apaixonados um pelo outro. Já tivera ciúmes com outros namorados, mas era a primeira vez que me confrontava com a ameaça em abstrato da beleza de outra mulher, uma mulher em que o P nem sequer repara. Sabia que ele, ao andar pela cidade ou pelo mundo, mesmo que não viesse a cruzar-se com aquela mulher, veria outras tão belas quanto ela. Sabia também que se eu tivesse estado sozinha na esplanada teria sido diferente, teria até apreciado que à beleza da tarde se tivesse juntado a daquela mulher. Portanto, a conclusão só podia ser uma: ter-me-ia sido insuportável testemunhar o P a ver a mulher bela, ter-me-ia sido insuportável escutar o seu lamento mudo que me estoiraria os tímpanos, Porque é que o teu corpo não é o corpo dela?
Confiei que se tratara de um episódio isolado, nas vezes seguintes em que nos cruzássemos com mulheres belas eu não seria tão irracional, não voltaria a reagir daquela maneira. Não foi assim e agora tenho a certeza de que há um momento na vida das mulheres em que elas ficam sábias em relação aos homens: é o momento em que reconhecem que estão velhas. A partir de então não há regresso.
Ensaiava como desabafar com uma amiga sem parecer demasiado ridícula quando, ao espreitar um livro de poemas da Wislawa Szymborska, ela me contou:
Estávamos à conversa
e de repente calámo-nos.
No terraço apareceu uma rapariga,
ai que bonita,
demasiado bonita
para a nossa estada aqui, tão sossegada.
A Barbara, alarmada, olhou de relance para o marido.
A Krystyna, instintivamente, pousou a sua mão
Sobre a do Zbyszek.
E eu pensei ligar e dizer-te:
Por enquanto não venhas,
preveem chuva para os próximos dias.
Somente a Agnieszka, viúva,
saudou a bonita rapariga com um sorriso.
Que bom a Wislawa ter-me feito esta confissão. Continuo intranquila, mas já não sinto necessidade de falar sobre isto com ninguém. É um segredo entre nós.
(Crónica publicada na VISÃO 1390 de 24 de outubro)