Uma noite de verão, no já tão longínquo ano de 2001. Candeeiros de jardim transformam as copas das árvores em abajures de tremeluzente folhagem. Os ares condicionados e outras máquinas mais corpulentas resfolegam, pesadas. O breu e as silhuetas das árvores não tapam as fachadas dos edifícios dispersos. Num deles, abre-se uma porta.
As pessoas que dela saem, a empurrar uma maca, vão desenhando um cortejo esbranquiçado, batas brancas, sapatos brancos. Há uma mulher deitada, descomposta, quase nua, sobre o lençol igualmente branco da maca. Os enfermeiros conduzem-na até meio do jardim e deixam-se ficar ali parados. Não tenho a certeza de quantos enfermeiros são. Dois, pelo menos. Não tenho a certeza de um deles ter acendido um cigarro. Talvez cantarole, também. Se conversam, não sei o que dizem. Mas uma coisa sei: a mulher que está deitada na maca é a minha irmã. O corpo dela, a arder em febre, não reage aos medicamentos e o funcionamento dos órgãos está ameaçado.
A temperatura da noite é cerca de metade da do corpo delirante da minha irmã, Levá-la para a rua foi a única maneira de lhe baixar a febre, disseram-me, no dia seguinte, quando regressei ao Hospital Egas Moniz, à hora da visita. Apesar do sofrimento, a beleza deste episódio noturno entranhou-se em mim e estas imagens passaram a habitar-me como se as tivesse presenciado. A beleza é indiferente à dor. Por isso vigio-a.
Dias antes, a minha irmã dera entrada nas urgências do Hospital São Francisco Xavier com fortíssimas dores de cabeça. Aquilo que julgámos não ter importância revelou-se uma meningite. Horas depois, a minha irmã dizia coisas disparatadas, dizia, por exemplo, que a sua idade era cento e vinte e sete anos. De tempos a tempos, eu falava com os médicos que se mostravam cada vez mais reservados. Restava-me rezar e rezava incessantemente. Pelas duas da manhã, terminou o turno de uma das médicas com quem tinha falado e, estando ela de saída, voltei a abordá-la, A minha irmã não corre perigo de vida, pois não? Reconheci compaixão no tom da sua voz, Se a meningite for viral, ela pode não sobreviver a esta noite.
A meningite não era viral, a minha irmã foi transferida para o Hospital Egas Moniz, mas esteve em risco de vida durante quase um mês. Persistiam as febres altas e vi-a várias vezes alagada em suor, a desnudar-se, tal a aflição em que ela ficava. Continuou a dizer coisas despropositadas, nos seus delírios. Numa manhã, encontrei-a inesperadamente serena, quase igual à minha irmã antes de adoecer. Contou-me sem sobressalto que sonhara que estava a morrer, mas que fora um sonho bom. Sentira um prazer desconhecido, como se, aos poucos, o corpo se tivesse tornado líquido, esvaziando-se.
A minha irmã acabou por ficar bem e voltou para casa. Mais do que a memória da vulnerabilidade dos corpos, que a sua súbita doença expusera dolorosa e descaradamente, foi o sonho que ela me contara que passou a atormentar-me. A hipótese de os corpos deixarem de ser estanques inquietava-me o sono, cheguei a acordar com falta de ar, como se os meus pulmões estivessem a ser inundados. Com o tempo ganhei medo àquilo que, do lado de fora de mim, poderia desatar-me. Tornei-me consciente de quão incontroláveis seriam os caminhos por onde o meu corpo liquefeito me levaria e nada podia fazer contra o desassossego que esta ideia me causava.
Não me lembro ao fim de quanto tempo reconheci uma estranha familiaridade nesses caminhos. Afinal, há mais de reencontro do que de conflito quando a água cobre a terra. Como se água e terra se destinassem, e o barro estivesse sempre à espera da mão que molda o leito.
O terreno pode condicionar o curso de um rio, mas são a fonte e a sua força que o apontam. Aos poucos, descobri no recorrente sonho em que o meu corpo se liquefazia o prazer de que a minha irmã falara. Só consigo sentir prazer em relação àquilo em que me reencontro, mas a água não desconhece completamente o caminho que abre, a água tenta o terreno, escolhendo o percurso que melhor recolhe o ímpeto da fonte. A verdade é que a sensação de esvaimento que, de início, tanta dor me causara, foi-se tornado cada vez mais apetecível, levando-me a acreditar que o prazer é uma dor domada.
De uma forma ou de outra procuramos sempre o prazer. Por isso, perseguimos não o desconhecido – somos-lhe insensíveis – mas aquilo que já conhecemos sem saber que conhecemos. O prazer é, talvez, o resultado desse processo incontrolável de reconhecimento. Como e onde se encontra aquilo que conhecemos sem saber que conhecemos, ninguém sabe ao certo. Há quem atravesse o mundo nessa busca, quem procure deus, quem se entregue ao desespero, quem finja que nada disto interessa. Eu não encontro em mais lado algum o que não encontro em mim. Não se trata de uma questão filosófica, mas sim de um problema de natureza oftalmológica: sou míope e não gosto de usar óculos.
Quanto mais difuso o mundo à minha volta, mais diluída me sinto no que me rodeia. Sempre que posso, deixo-me ficar em casa ou parada em frente ao que não me ameaça. Até que as coisas, possivelmente exaustas de se sentirem observadas, se transmutam. Acontece, então, sobressaltar-me ou demorar a reconhecer aquilo que de novo se me apresenta.
Sem querer, a minha irmã enganou-me quando me contou o seu sonho. A sensação de entrega que me descreveu não era a de estar a morrer, mas a de estar a viver. Plenamente.