Nós tínhamos dois avós, um que chamávamos Avô Um e era pai do meu pai, e outro que chamávamos Avô Dois e era pai da minha mãe. O Avô Um era grande, barulhento, extrovertido. O Avô Dois pequeno, silencioso, fechado. Ambos antigos oficiais do Exército, ambos estiveram numa guerra muito velha, em 14/18, o Avô Um morava numa casa enorme e rica, com uma quinta, o Avô Dois num segundo andar perto. Lembro-me que o senhor do rés do chão tinha na porta uma placa com uma estrela e, por baixo da estrela, os dizeres Esperanto parolata. O Avô Um era surdo, quase completamente surdo, e usava um aparelho com um auscultador em cada orelha, unidos por um aro de metal. Os aparelhos tinham fios que acabavam numa caixa grande, metida no bolso do casaco, que devia conter as pilhas daquilo. O Avô Dois ouvia, quase não falava, não nos ligava nenhuma. Estava sempre a pensar noutra coisa e as suas gaffes tornaram-se famosas, sobretudo as gaffes nos velórios. Uma ocasião, por exemplo, deu uma palmadinha amiga no ombro de um viúvo, deprimido em frente do caixão, e aconselhou-o
– Não pense mais na morte da bezerra.
De outra vez, ao apertar a mão à viúva, ela
– Ai
o Avô Dois sempre a apertar-lhe a mão, consolador
– Todos temos de morrer, minha senhora, coragem
e a viúva
– Ai
o Avô Dois
– É a vida, o que é que quer, vamos lá reagir
até que a viúva, possessa
– Não é isso, é que me está a magoar.
Também me lembro do episódio em que encontrou um amigo que já não via há tempos e que não parava de conversar, segurando-lhe a lapela, sem que o Avô Dois percebesse uma palavra. No fim do discurso, em voz mais alta, pediu-lhe a opinião sobre o que tinha acabado de dizer e o Avô Dois que escutou o pedido de opinião sem ter percebido o discurso anterior, arriscou uma frase fatal
– Isso é de uma estupidez…
e, até ao termo da vida, ignorou o motivo pelo qual o amigo cortou relações com ele.
Recordo-me do Avô Dois sobretudo na Beira Alta, onde passávamos setembro em sua casa, a ler o Diário de Notícias que chegava no comboio das onze, encostado à varanda para a serra, e recordo-me sobretudo do vago sorriso com que, em geral, comunicava com aqueles que se lhe dirigiam porque o
– Isso é de uma estupidez
serviu-lhe de lição. Quando não se encostava à varanda nem passeava na vinha, lia livros, coisa que o Avô Um nunca fez, pelo menos na minha presença. Recordo-me de o ver com um romance de Aquilino e do facto de existir alguém chamado Aquilino me assombrar: a palavra Aquilino andou-me semanas seguidas na cabeça, logo que pude abri o livro, não entendi patavina e achei o nome e o livro uma espécie de piada para pessoas crescidas, como aquelas que os meus tios segredavam, rindo-se muito, e que eu não entendia igualmente. Se calhar Aquilino e os seus livros só prestavam para criaturas entre os vinte e os quarenta porque quando o Avô Dois, que tinha para aí sessenta, aparecia, eles se calavam logo. O livro chamava-se Via Sinuosa e, até hoje, espantado com o Via e o Sinuosa não fui capaz de folheá-lo: sei lá o que está impresso lá dentro, e há coisas de que é melhor, por prudência e bom senso, não nos aproximarmos delas. Mas o que me tocava mais
(tocava toda a gente)
no Avô Dois era a sua bondade. Exemplo: ele deixava o automóvel numa garagem ao pé de casa e, a certa altura, um dos meus tios descobriu que um sujeito qualquer, que trabalhava na dita garagem, passeava à noite, com a namorada, no seu carro. Comunicou-se o pecado ao Avô Dois que, em lugar de zangar-se, passou a atestar o depósito com medo que o ladrão ficasse sem gasolina em Monsanto e a namorada e ele tivessem que voltar a pé para Benfica, a corta-mato, sujeitos a assaltos de ladrões, ambos às escuras, perdidos naquele matagal quase africano, de certeza que povoado por criaturas desumanas e animais perigosíssimos. Quando os filhos se indignaram com o assunto a única resposta do Avô Dois foi
– Coitados
e considerou o problema encerrado. Segundo exemplo:
(há dúzias)
a casa do Avô Dois era de risca ao meio, isto é um corredor comprido, com a porta da rua numa das extremidades e a cozinha na outra. Diante da porta da rua, na parede em frente, um bengaleiro para as gabardines e sobretudos da família. Nessa época havia pobres a pedirem esmola por todo o lado. Um dia tocaram à campainha e era um pobre. A criada, generosa, atravessou o corredor para ir à cozinha buscar pão ou outra coisa qualquer de comer. Por instinto voltou-se antes do fogão e deu com o pobre a estender o braço para o bengaleiro, a tirar um sobretudo e a escapar a trote degraus abaixo. Alertou a minha avó, que por sua vez sacudiu o Avô Dois
– António, António
(quer o Avô Um quer o Avô Dois eram Antónios)
explicou-lhe o que se passava aos gritos e o Avô Dois saiu a correr atrás do gatuno. Passaram cinco minutos, passaram dez minutos, passou um quarto de hora e o Avô Dois não voltava. Voltou mais tarde, sozinho, sem sobretudo, e instalou-se na sala se calhar com a tal Via Sinuosa
(estas coisas duram)
na mão. A minha avó, que já estava preocupada, foi logo ter com ele
(tudo isto aos gritos, claro, atendendo à surdez)
a perguntar-lhe
– Viste-o?
e o Avô Dois, sem sair do livro, acenou que sim. A minha avó
– Apanhaste-o?
Novo aceno que sim.
– Tinha o sobretudo?
Outro sim.
A minha avó, em desespero
– Porque é que não trouxeste o sobretudo nem foste à polícia?
E aí o Avô Dois interrompeu o livro, tirou os óculos e olhou para ela de baixo para cima
– Coitado, estava sentado cansadíssimo num banco da avenida, ainda por cima com este frio, de modo que tive pena e vim-me embora.
Com a minha avó capaz de matá-lo. Pouco depois, aos sessenta e quatro anos, um cancro levou o Avô Dois. Eu tinha doze, o João dez, o Pedro nove, etc. Foi aliás o Pedro que nos disse
– O Avô Um estava na agência funerária (que era perto da nossa casa) a comprar o caixão ao Avô Dois. Lembro-me de estar sentado à mesa, a escrever
(eu já escrevia)
e desatarmos todos a chorar, mesmo não sabendo bem o que era a morte. Lembro-me da nossa mãe, que era de poucas lágrimas e nenhumas cenas e adorava o pai, a chorar também. E, já agora, antes que me comova outra vez, não pensemos mais na morte da bezerra.