A migração europeia tem inimigos para lá do Reino Unido. O ‘Brexit’ não vai acabar, por isso, com o debate sobre a livre circulação de pessoas. Apenas o tornará mais dissimulado. Londres teve sempre o papel principal, e os holofotes, na hora de defender restrições aos europeus que se atreviam a querer viver ou trabalhar em outro país da União Europeia. Mas não estava só. Áustria, Holanda e Alemanha tinham muitos pontos em comum com a posição ruidosa britânica, ao ponto de escreverem os quatro uma carta a Bruxelas a alertar para o risco do chamado “turismo social”.
O termo fez, e ainda faz, escola. Se os britânicos tivessem votado a favor de permanecer na União Europeia, David Cameron introduziria novas leis para travar, e muito, o acesso dos vizinhos europeus ao sistema social do país. Com o voto no ‘Brexit’, quem aprovou essas leis foi o governo alemão. Berlim esperou pela exceção britânica para abrir caminho mas, sem ela, o executivo de Merkel avançou sozinho. Só ao fim de cinco anos de residência legal na Alemanha um cidadão europeu pode ter acesso a prestações sociais do sistema não-contributivo germânico (Hartz IV). Antes eram seis meses.
O “turismo social” justifica esta incontinência legislativa ou é mais um ‘papão’ político, uma ação de propaganda populista? Os números apontam para a segunda hipótese. Só 2,8% dos europeus vive em outro país da UE. Segundo um relatório do Notre Europe, quer no Reino Unido, quer na Alemanha, os migrantes europeus rondam os 4% da população, menos que os 7% na Irlanda ou os 40% no Luxemburgo. E a sua contribuição positiva para o orçamento, em 2013, oscilava entre os 11 mil milhões de euros na Alemanha e os 600 milhões no Reino Unido. Resta a outra justificação: a crescente politização da mobilidade europeia, sobretudo em vésperas de eleições, como é o caso alemão.
Pelo meio, a cidadania europeia, acoplada ao princípio de não-discriminação, é encostada a uma versão minimalista ou de elite. Entre diretivas europeias vagas e jurisprudência errática sobre os limites da livre circulação de pessoas, cada vez mais só os migrantes europeus com recursos, ou com emprego, e saudáveis podem pensar em viver num estado vizinho – e de preferência com elevada educação, na qual os estados recetores não tiveram de investir. Pedir assistência social, não-contributiva, em igualdade de direitos com os cidadãos nacionais, não é para migrantes pobres ou doentes ou para os que procuram o primeiro emprego. A cidadania europeia tem limites na solidariedade social.
Bruxelas acordou agora para o pilar social, o mais coxo de uma União Europeia concentrada na integração económica e monetária. Os direitos sociais, aliás, têm sido os alvos políticos das instituições internacionais, com cortes a eito nas regras laborais e uma menos generosa assistência social durante a Grande Austeridade. Qualquer estabilizador automático social foi esmagado. Nenhum país, em particular a Alemanha, quer abdicar da competência exclusiva que os estados-membros têm na área social e entregar, parte ou o todo, a Bruxelas. Por várias vezes, durante a crise da zona euro, a chanceler alemã lembrou e repetiu que a UE “não é uma união social”.
É esta versão que a Comissão Europeia quer agora contrariar. Bruxelas soube ler o momento político, o descontentamento com a globalização, as desigualdades que tornam o voto imprevisível e alimentam os partidos populistas. A resposta talvez seja tardia. É ano eleitoral na Alemanha e na Holanda – avessas a discutir planos sociais europeus – e em França, mais recetiva ou não dependendo da nova cor do Eliseu. Até março, Jean-Claude Juncker promete mostrar o pilar europeu dos direitos sociais. Fala-se num rendimento mínimo garantido ou de um mecanismo de salário mínimo à escala europeia. Mas sem a luz verde, difícil, dos 28 estados-membros o raio de ação de Bruxelas é curto. Uma pequena vitória seria impedir os estados de legislar contra um não-assunto, como é o do “turismo social”.