A discussão sobre o programa do Governo, que decorreu, esta semana, na Assembleia da República, teve o mérito de lançar algumas pistas para o debate político, no que serão os primeiros tempos da legislatura. Eis algumas notas a ter em conta.
A “descentenização” do País
Com Mário Centeno a ocupar um lugar mais discreto na hierarquia do Governo, atrás de António Costa, Pedro Siza Vieira, Augusto Santos Silva e Mariana Vieira da Silva (os ministros de Estado que falaram, no debate, ficando Centeno, o último com aquele estatuto, de fora…), António Costa quis dar o sinal de que o Governo disfarçará o pendor “financista”, embora o ministro das Finanças continue, agora mais na sombra, a ser o sargento-mor do Governo. Pedro Siza Vieira serviu para colocar o foco na economia – e na transição digital, nova bandeira socialista… – Mariana para adquirir mais tarimba política e Augusto Santos Silva para dar o recado à esquerda: Portugal vai cumprir todas as regras europeias e a opção do País é a da integração europeia. Outro ministro que interveio foi Matos Fernandes, para cumprir a necessária quota ambiental, que sobe na hierarquia do Governo, e para expressar a nova paixão pelo dossiê das alterações climáticas. Costa decidiu-se pela “descentenização” formal do País e pelo “desmame” nacional do ministro-estrela da anterior legislatura, em termos de exposição pública, a preparar a sua saída após a presidência portuguesa da União, em 2021.
A chantagem à esquerda
Primeiro foi António Costa, a abrir, e depois, de forma ainda mais veemente e explícita, Augusto Santos Silva, a fechar. Vamos traduzir por miúdos o que eles quiseram dizer ao Bloco, PCP e PEV (já agora, ao PAN e ao Livre): “Vocês portem-se bem porque, se o Governo cair, a culpa será da vossa panelinha com a direita. Por isso, bolinha baixa, que o guarda-redes é anão.” As expressões “coligação negativa” e “traição ao eleitorado” vieram mesmo à baila, numa inconcebível chantagem política, acatada, quase em silêncio, pelos antigos parceiros de geringonça. Ora, o critério, para chumbar, por exemplo, um Orçamento de Estado, não é o de olhar para a forma como votam os vizinhos do lado, mas o dos méritos ou deméritos do documento. Se fosse comigo, era-me indiferente se estivesse em consonância com a direita ou com a esquerda: votaria contra o Governo sempre que o Governo o merecesse. Ponto final. E convinha que alguém tivesse explicado isto a António Costa, como se António Costa tivesse cinco anos. Quanto ao resto, acusações de coligações negativas ou alianças contra-natura, eu citaria declarações recentes do treinador do FC do Porto, Sérgio Conceição (que me dispenso de reproduzir aqui…). Aliás, a resposta de Catarina Martins – “não assinamos cheques em branco” – é de uma brandura e de uma timidez surpreendentes.
O fator Sócrates
Ao mesmo tempo que se discutia o programa do Governo, José Sócrates era interrogado pelo juiz do “TICÃO”, Ivo Rosa. Disso se lembrou André Ventura, do CHEGA, e, de forma indireta, o deputado da IL, João Cotrim de Figueiredo. Sócrates é um fantasma sempre presente, é verdade, mas o assunto já está gasto, requentado e estafado em termos de argumentação política. Duvido muito que tenha qualquer tipo de eficácia, para a direita, tentar trazer o antigo primeiro-ministro à colação. Mais eficaz seria, isso sim, perguntar a António Costa por que razão foi à estação do Pragal beber um cafezinho e não aproveitou para visitar as instalações do Hospital Garcia de Orta, mesmo ali ao lado. Mais uma vez, a urgência pediátrica estará fechada entre esta sexta-feira e segunda-feira de manhã, e assim sucessivamente, todos os fins-de-semana. É inacreditável que uma estrutura de saúde pública que serve meio milhão de pessoas esteja há semanas nesta penúria, ao mesmo tempo que a ministra Marta Temido se senta, placidamente, na bancada do Governo, sem fazer nada de útil e mostrando ar de enfado sempre que a degradação do SNS é denunciada no argumentário parlamentar. Deplorável.
O incómodo do lítio
Já se percebeu que Rui Rio não vai largar o osso do caso da concessão da prospeção de lítio, em Montalegre, envolvida em contornos alegadamente pouco transparentes. O líder do PSD chama-lhe “um enigma por desvendar” e não vai deixar cair o assunto. Rui Rio, nas suas intervenções, aliás, discutiu pouco, em concreto, o programa do Governo e mais a atualidade, como se estivesse num debate quinzenal. Para já, deve ter deixado os militantes do PSD satisfeitos – e deve ter retirado algum gás à oposição interna. De caminho, para dentro, o líder do PSD avisou que o partido não fará uma oposição de “bota-abaixo”, o que para ele, seria “pouco inteligente”. Tem a palavra Luís Montenegro – mas a tribuna parlamentar de Rio, mais do que incomodar o Governo, vai servir para combater a concorrência interna, retirando-lhe argumentos para ir a jogo. Viu-se já a amostra disso mesmo.
Pequenos pequeninos
As intervenções dos partidos estreantes foram paupérrimas. Esperava-se alguma consistência do discurso de Cotrim de Figueiredo, mas o deputado eleito pela Iniciativa Liberal esteve longe de se apresentar em linha com os imaginativos cartazes do seu partido, distribuídos pelas ruas do País. Mais valia irem chamar o criativo que os faz… Pelo contrário: foi chato, vazio de ideias, monocórdico, mal informado, superficial, e as suas intervenções foram de uma pobreza franciscana. A primeira foi má, mas a segunda ainda poderia dar-lhe uma segunda oportunidade de causar uma primeira boa impressão. Infelizmente, limitou-se a aproveitar as dicas da imprensa online, publicadas imediatamente após a primeira ronda de intervenções, nomeadamente quando se congratulou por Costa ter deito dele “o principal adversário”. Na sua candura, Cotrim nem sequer percebeu que Costa apenas se serviu dele para atacar o PSD…
O deputado do CHEGA foi igual a si próprio, não tendo desiludido os seus apoiantes. Isso mesmo é que é preocupante: o seu discurso, na tribuna do Parlamento, dececionou pelo português, pelas frases sem sentido, pela sintaxe de halloween (tenebrosa, portanto) e pela gaguez mental. Se calhar, é melhor começar a pedir que lhe escrevam os discursos, porque o homem não sabe falar. Ou não sabe falar naquele registo – que não é o de um painel televisivo. Dito isto, ao contrário da opinião corrente, eu fico mais descansado se a extrema-direita que temos for esta. Nota-se à légua que André Ventura não acredita em mais de metade do que diz, e que só se dedicou a este filão de registo taxista, por saber que havia aqui um mercado. Ele é o exemplo típico do português que diz “agarrem-me, senão vou-me a ele”. Debaixo da bravata, é inofensivo. Diferente seria se o PNR tivesse tido êxito…
Mas se Ventura deve arranjar quem lhe escreva os discursos, à deputada do Livre recomenda-se que arranje quem lhos leia. O problema é que quando acaba a frase já não nos lembramos do seu início. Resultado, a sua mensagem não se percebe, o que só a prejudica e ao partido. Joacine já argumentou que a mensagem deve ter passado, ou não teria sido eleita. Bem, a novidade, a coragem, o arrojo e a diferença (mais do que a mensagem…) podem ser qualidades premiadas em eleições, mas na tribuna parlamentar requer-se clareza. No atual formato, vai cansar, até se tornar irrelevante. E deixar de criticar Joacine, fugir ao facto de que a sua gaguez é incompatível com as funções da oratória, por se recear a acusação de discriminação ou de preconceito, seria ser condescendente e paternalista, o que é muito pior e revela, isso sim, uma atitude discriminatória e preconceituosa. Ora, tenho a certeza de que a deputada não foi eleita por os portugueses gostarem de “coitadinhos” nem quer ser tratada como a “coitadinha”. E, portanto, deve aceitar que não são permitidos tabus nesta matéria.