Há um testo para cada panela, lá dizia a minha tia. Nada se perde, tudo se transforma, dizia antes dela Lavoisier. Vendo uma dentadura usada em muito bom estado e completa por €100, diz um senhor de Rio Maior num site de anúncios online, claramente na mesma linha de raciocínio. Não quero pensar demasiado no destino do anterior proprietário da dentadura, para tal objeto ter ficado disponível (mas recorde-se que os dentes não voltam a crescer depois de caírem). O que me impressiona é como os classificados retratam tão bem a portugalidade – nas suas qualidades, defeitos e feitios. Aqui ficam alguns tipos que se veem por lá.
7. O assassino da língua
Encontrei três anúncios de “anunsios”. Mas isso é o menos. Quem procura um “tractor Falcão”, um “motor Audi A4” ou um “elevador de vidro Renault Master” vai encontrá-los, independentemente de ser um anúncio ou um “anunsio”. Problema maior tem o vendedor de um “Ifone 5S novo, branco 16Gb”, que diz estar a vender por “não ser o telemóvel que mandei comprar” (acredito). Por esta altura, ainda deve estar a pensar porque é que ninguém lhe liga, sendo o preço bastante razoável. Há outras 11 pessoas no mesmo site que acham que iPhone se escreve iFone, mas a maioria está vendedora (há um que quer um iFone, mas só se for para trocar por uma “Bonva da direcao acistida bmw 320”, coisa que, desconfio, também não tem grande procura). Na mesma linha, há dez anúncios de “Mersedes” (e um deles está “reseptivo” a trocas), 67 com a palavra “cosinhas” (a divisão onde se prepara a comida), 44 “expetacular” (imagino que sejam coisas que eram espetaculares mas deixaram de ser), um “umidificador”, corvettes (para gelo), autoculantes, carros em bom “extado” (vide “expetacular”), uma venda “orgente” e uma cadeira de dentista “osada”, um tabuleiro de “chadrez” e uma canoa “fassil” de ser transportada. Há ainda um estudante de engenharia do 3º ano que dá “esplicações” (de matemática, felizmente).
6. O tu-cá-tu-lá
Há pessoal que é nosso amigo sem nunca nos ter conhecido. E fala connosco como tal. É o cavalheiro que vende “bués” colheres de café, que pode ou não ser o mesmo que oferece “uma camisa cheia de estilo e bué de jovem”; o do “Citroen 2 CV como novo, sem direção assistida, sem ABS, sem airbagues, sem fecho central, sem eletrónica, sem merdas” e o do capacete sem canais de ventilação, porque esses “são uma merda”; um Ford Taunus, que não pertenceu “ao maricas do Chuck Norris” nem é “para gajos com penteado à Casa dos Segredos” (este anúncio, aliás, é um tratado de humor voluntário, que me dá vontade de comprar o carro só para poder apertar a mão ao autor da prosa); uns bolos e bolinhos que são “coisas de miúda prendada de que gajo solteiro não precisa”; o que se irrita com “mariquices”; e o que disponibiliza jantes com pneus à prova de bala, tipo os que são usados por “mafiosos” (nota-se que conhece o seu público-alvo, e não tem vergonha de o assumir).
5. O sem-tabus
Está comprador de vibradores? Não vai sair desiludido dos classificados. Uma senhora tem uns quantos (com “30 velocidades”) que “entrega em mãos”, porque “é preferível termos isto que se portar mal estamos no século XXI”. Não especifica se são novos ou usados (nem tampouco de que forma os vibradores impedem alguém de se portar mal), mas, porque acredito na bondade do espírito humano, parto do princípio que estejam por estrear. Tenho mais dúvidas que as “revistas dos anos 70 e 80 para adultos: Gina, Tânia, Bomb Sex e outras, a €3 cada”, de outro vendedor, nunca tenham sido folheadas ou devidamente apreciadas. O mesmo não acontece com uma coleção de VHS pornográficos: “Todos os filmes foram visionados (…) e estão em excelente estado”, garante o dono. É bom saber.
4. O finório
Sei que os móveis da IKEA dão uma trabalheira danada a montar. Mas nunca me passaria pela cabeça vendê-los, com anos de uso no lombo, ao mesmo preço ou mais caros do que os originais, só porque passei 20 minutos a insultar o autor das instruções. Nem toda a gente pensa da mesma forma, aparentemente, e gosto de pensar que é isso que torna este mundo interessante. Não é, no entanto, por isso que vou dar €35 por uma mesa de centro Lack “com três anos, praticamente nova” (se tem três anos, não está praticamente nova, está com três anos), se a mesma mesa absolutamente nova custa os mesmos €35. É na esperança que o potencial comprador não espreite o site do IKEA para ver quanto custa o móvel? Então é má ideia escrever o nome da mesa e usar uma imagem do próprio catálogo da empresa. Respeito a tentativa, mas não, obrigado. E, por razões de certo modo semelhantes, também não vou contactar o senhor que se oferece para, “GRATUITAMENTE”, ir a minha casa buscar “todo o tipo de material informático” ou à minha garagem aliviar-me dos “recheios” e do meu veículo “em fim de vida”. Nem o que faz “serviço de recolha GRÁTIS” de “mobília que ainda esteja em condições de uso”. “Fazemos todo o serviço e entregamos-lhe a casa limpa”? Ou seja, um assalto em que eu abro a porta aos larápios? Mais importante: é suposto eu agradecer, no fim?
3. O pirata
Há literalmente (e eu não uso esta palavra de forma leviana) centenas de anúncios de consolas de jogos “chipadas” (modificadas para conseguirem ler jogos piratas). E a propósito, porque uma pistola é inútil sem balas, mais uns quantos de jogos “gravados”. E “cópias” de filmes. E um anúncio de “400 CD de música gravada”: “Vários tipos de música mais africana francesa troco por animais de quinta cabras galinhas porcos ou apresentem ofertas quero despacar isto”. Mais do que o autor do anúncio, gostava era de conhecer o indivíduo que se chega à frente e diz: “Sim, tenho aqui três cabras, duas galinhas e um porco para trocar por esses CD piratas. Cansei-me da quinta e agora quero é ouvir música da boa. Pirata.”
2. O honrado
O mundo dos classificados é indecente. Digo isto apoiado na quantidade de gente que se insurge especificamente contra a indecência. “Não me venham com propostas indecentes” (na venda de um Mercedes). “Não aceito propostas indecentes!” (por umas jantes). “Propostas indecentes serão ignoradas” (disco rígido). “Tenho recebido propostas indecentes, às quais nem dou resposta” (Opel Corsa). “Por favor não me venham com propostas indecentes porque nem me dou ao trabalho de responder” (bicicleta). Porque o dinheiro é agradável, mas a dignidade não tem preço.
1. O especulador
O valor que se dá a um objeto é quase sempre subjetivo. É por essa razão que não se pode censurar o orgulhoso proprietário de um carro de bois, “antigo em muito bom estado como novo” (embora a foto, como se vê, pareça desmenti-lo ligeiramente), que pede uns estranhamente exatos €677. Pode parecer um pedaço de lixo, mas um pedaço de lixo vintage, e que não tem preço de partida. Por outro lado, a VISÃO tem um preço, afixado na capa: €3, hoje. O que não impede ninguém de vender exemplares velhos (vintage?) por €4. Aliás, a VISÃO nem precisa de muito tempo para se valorizar: uma revista do ano passado está à venda por €5. Longe de mim censurar a pretensa audácia: a VISÃO é realmente muito bem escrita.