Na noite de sexta para sábado, fomos confrontados com a tentativa de golpe na Turquia e, a dada altura – já não sei em que canal –, levantou-se a questão da legitimidade de um golpe militar derrubar uma democracia eleita, quando os militares invocam o restabelecimento de princípios como o da laicidade e o do respeito das minorias ou dos direitos humanos em geral.
O golpe falhou e não sei se os militares iriam ou não respeitar essas promessas. Não é agora importante. O que me interessa é discutir a teoria da coisa, que levantou logo vozes contra e a favor.
Todos estávamos ainda no rescaldo do atentado de Nice e, contra todas as aparências, achei que os dois acontecimentos se encontravam relacionados numa certa ansiedade de fim do mundo. Vou tentar explicar a minha ideia, começando um pouco atrás.
Uma lei não pode ser anticonstitucional. Logo, tal significa que há dispositivos normativos que estão acima de outros. É evidente. Também me parece evidente afirmar que o Homem está acima dos povos. Quero com isto dizer que a lei de um povo não pode estar acima das leis humanas. Mesmo que esse povo decida democraticamente. A democracia é apenas um meio para atingir um fim mais amplo. Assim, as democracias, quaisquer que sejam, devem respeitar os princípios humanitários globais. Um exemplo simples: um governo democraticamente eleito com 80% dos votos dos eleitores não pode maltratar ou perseguir uma minoria étnica ou religiosa que votou outra coisa. Ou anular as liberdades. Mesmo que todos (os 100% dos eleitores) estejam de acordo em anular as liberdades, tal não pode ser decidido. Porque existem as crianças que não votaram, que são seres humanos como os outros e não têm culpa da loucura dos pais.
Por estas razões, defenderia sempre uma intervenção militar sobre um governo eleito, desde que fosse para restabelecer os direitos essenciais. Pode perguntar-se: e quais são eles? E quem os decide? É fácil. Desde 1789, e desde a carta das Nações Unidas, há consenso nesse domínio. Mas eu relembro: dizem respeito ao respeito pela dignidade do ser humano, à justiça, às liberdades de reunião e expressão, tudo ideias que não levantam dúvidas de maior.
E Nice? Nice foi um acontecimento como outros que aconteceram e muitos mais que vão acontecer. E não vale a pena os dirigentes europeus fingirem lágrimas de crocodilo, nem quotizarem-se para o senhor Hollande comprar mais armas e tinta para o cabelo. A única solução passa pela integração social destas comunidades. E isso só vai acontecer quando se colocarem os direitos humanos acima dos direitos dos povos. O que é impossível enquanto a mentalidade reinante não mudar. Enquanto se valorizar a luta de «nações» em campeonatos de futebol que exacerbam o erro primordial. Enquanto se pretender dar vida concreta a uma entidade abstracta chamada «povo», que é algo que não existe. Os povos são apenas os indivíduos que os compõem nesse momento. Os gregos são um grande povo? Pergunto: estamos a falar de hoje ou de há 2.500 anos? Os alemães são um grande povo? Pergunto: estamos a falar de música, de filosofia ou da barbárie nazi? Por favor, não me falem em coisas como a «raça lusa», pois, a Antropologia já explicou que somos todos primos entre nós e, consequentemente – esta é para os mais monárquicos –, da rainha de Inglaterra.
Conclusão: um povo é uma construção mental, abstracta, que serve para os seus membros terem a mania de que são melhores do que os outros. E as leis dos povos devem submeter-se às leis humanas. E nós, europeus ricos que estamos no poleiro e possuímos mais instrução, temos de ajudar os menos afortunados a sair da miséria económica e mental em que vivem. Eles não vêm cá roubar nada. Por que isto não é nosso. É de todos. E se nós temos água potável e eles não, é porque somos privilegiados. Não temos mais direito a ter água potável do que eles. A coisa que qualquer de nós menos desejaria era ter nascido num país desses, e morrer às mãos de atrasados mentais sanguinários, ou ser criança e viver na miséria e assistir às chacinas diárias contra amigos e familiares, ou ser mulher e ser mais maltratada do que um camelo. Mas tivemos a imensa sorte de não nascer nessas paragens. E, em vez de ficarmos agradecidos, utilizámos todo o nosso engenho para transformar o privilégio em direito. Impedindo aos outros o acesso ao bote de salvação.
Fizemos mal. Fomos injustos para esses seres humanos. E continuamos a ser. E agora iremos pagar por isso. Se não aprendermos, se não mudarmos, vamos pagar caro pela injustiça humanitária que queremos manter a todo o custo para defender os nossos privilégios.