Tenho sempre tido preconceito em relação aos orgulhos identitários nacionais. Por os achar extremamente prejudiciais. Aliás, o Brexit e tudo o que aconteceu posteriormente no reino ilhéu é prova de que o meu preconceito é inteiramente justificado. Por outro lado, tenho uma certa aversão ao peso que o futebol tem na nossa vida quotidiana portuguesa. Não são só os histéricos que aparecem na televisão e dão a entender que a sua vida começa e termina ali. São também os comentadores para os quais já não consigo olhar – porque há muito que já não os consigo ouvir.
Por último, tenho uma irritação solene com o hino, que agora ouço todas as semanas, e outras manifestações similares impossíveis de aturar. Mas peguemos no hino. Num país de poetas, quem é o senhor Henrique de Mendonça? Egrégios avós? Às armas? Marchar contra canhões? Isto, para não falar do resto do hino, que felizmente não cantamos, onde aparecem preciosidades como «beija o solo teu jucundo». Pergunto: está tudo doido? Continuamos a cantar estas coisas como papagaios? Não será tempo de pensar sobre o que fazemos, em vez de nos comportarmos como marionetas ditadas pela tradição?
Devo dizer que os outros hinos não são melhores. O francês, que supostamente inspirou o nosso, diz as mesmas irrelevâncias, apesar de falar de liberdade e tirania (assuntos actuais). O inglês é ridículo. É curto, quase só fala de deus e rei, e rei e deus (ou rainha, como é o caso nos últimos anos), e, para cúmulo, é um símbolo nacionalista e patriótico inglês, mas de origem francesa. Ao que consta, foi criado pelo célebre Lully para festejar o sucesso de uma operação cirúrgica a uma fístula anal (sic!) de Luís XIV. A peça chamava-se «Grand Dieu sauve le roi».
Mas esqueçamos estas menoridades e voltemos ao futebol.
Na quarta-feira, após o jogo com Gales, e depois de ver aquele golo em que Ronaldo paira metros acima da mediocridade alheia, vi-o fazer declarações em que ressalvou o facto de, há 13 anos – segundo as suas palavras –, se esforçar imensamente por jogar ao mais alto nível. E comoveu-se. E eu comovi-me com ele. Cá dentro, desculpei-lhe tudo: aquele teatro que às vezes faz, aquela preguiçazinha de ficar à espera que lhe passem a bola, aquele marketing enorme em que se especializou. Pensei que poucos homens terão sido tão grandes na representação do seu país. E, por isso, apesar da minha aversão ao nacionalismo, reconciliei-me com ele e penso que Portugal lhe deve um agradecimento profundo. O seu golo, cuja elevação foi capa de inúmeros jornais por esse mundo fora, mostra que é um profissional absolutamente excepcional.
Mas não consegui ser plenamente feliz na quarta-feira. Logo a seguir às declarações plenas de humanidade de Ronaldo, assisti a comentários de emigrantes portugueses em França que destilaram ódio contra o seu país de acolhimento e aproveitam agora o momento de felicidade e de confraternização, que devia ser a essência da prática desportiva, para ajustar contas com os franceses, que pelos vistos odeiam. Eu sei que os franceses são, muitas vezes, xenófobos e sobranceiros. Mas acolheram-nos, desde os idos anos 60, quando precisámos muito deles. E, grande parte das vezes, não nos acolheram melhor porque a miséria, o analfabetismo e a clausura do Portugal desse tempo nos impediu – é a minha opinião – uma inserção plena no já civilizado mundo europeu da altura. Frequentemente preferimos valorizar a memória do sufoco rural da origem, nem que fosse através da sardinha ou do bacalhau, em vez dos desafios contemporâneos e cosmopolitas do destino. Não gostam de França? Venham-se embora. Não gostam da Alemanha (também ouvi comentários a respeito do que seria vingança adequada dar uma sova à Alemanha)? Então não lhes peçamos dinheiro emprestado.
Penso que devemos evitar a todo o custo as manifestações da nossa pequenez. Não para evitar envergonhar os povos, mas para defender o Homem. O Cristiano Ronaldo foi grande. Mas essa grandeza não se espalhou. Gostava que o futebol, como tudo o mais na nossa vida – incluindo desgraça do hino –, contribuísse para a dignidade e para a elevação do ser humano.