Vendo os horrores que vão acontecendo por França, com tipos a partir cadeiras na cabeça de outros, ainda por cima usando a cobardia do ataque pelas costas, o meu filho Manuel pergunta-me: tudo isto acontecerá por paixão delirante pelo futebol, misturada com facciosismo identitário nacionalista, ou por estes ingleses beberem de mais? É claro que acho que esses factores são importantes, e que funcionam em interacção – que é um conceito da Estatística que significa que as variáveis independentes, neste caso o facciosismo e a bebida, não actuam sozinhas sobre a variável dependente, neste caso a violência; mas já produzem efeito quando agem em conjunto. Ou seja, não é por ser faccioso que sou violento, nem é por estar bêbedo que sou violento; sou violento porque sou um faccioso bêbedo. No entanto, também achei que, como bom pai que tem obrigação de levar o seu filho sempre mais longe, devia recorrer às minhas competências longínquas da Sociologia. E formulei uma teoria segundo a qual o problema dos ingleses deve-se sobretudo a viverem numa sociedade com muito pouca mobilidade social. Teoria que merece algum esclarecimento.
Por mobilidade social deve entender-se a facilidade com que um indivíduo pode subir (ou descer) na escala social. Por exemplo, hoje ser operário e amanhã proprietário de uma grande empresa. Ou, usando um exemplo mais realista, ser filhos de operários e tornar-se proprietário de uma grande empresa. Normalmente, a mobilidade social cria-se através da Educação. E os países com maior mobilidade social são aqueles em que todos levam longe a sua escolaridade, independentemente do berço, quer dizer, do posicionamento social dos pais. Ora, segundo a minha teoria momentânea (pois nunca estudei o assunto), os ingleses vivem numa sociedade muito hierarquizada, com forte componente de valorização aristocrática, na qual as condições do nascimento ditam o futuro da criança. Assim, um filho de ricos ou de «boas famílias» vai estudar para Eton e será rico. O filho do operário tem um horizonte balizado (já que estamos a falar de futebol…) pela fábrica onde o pai trabalha. E esta sensação de impotência em relação à mobilidade e ao futuro gera uma frustração que diz a estes jovens o seguinte: faças o que fizeres, vais ser um desgraçado, pois o bom comportamento só raramente é premiado. Juntando esta ideia à célebre e perigosa tese do Bakunin «se não tens nada, não tens nada a perder», estes jovens comportam-se com a falta de responsabilidade resultante da sua falta de liberdade.
O meu filho já está habituado às minhas teorias e, treinado familiarmente para não falar de cor e esforçar-se por conhecer os números da realidade antes de emitir uma opinião, atacou no sítio certo: mas é verdade que há pouca mobilidade social no Reino Unido? Fomos ver: num relatório da OCDE, de 2010, surge um gráfico com um índice mobilidade social estimado para vários países, a partir de diversos estudos. E qual é o país que aparece à frente no ranking? Great Britain, of course. Em primeiro lugar – quer dizer, com menos mobilidade social – os ingleses, depois (por ordem decrescente de imobilismo) Itália, USA, França, Espanha, Alemanha, Suécia, Canadá, Finlândia, Noruega, Austrália e, por fim, Dinamarca. Fiquei todo inchado com o meu conhecimento empírico e intuitivo das sociedades europeias e até pensei que a teoria se aplicava ainda melhor aos russos (que também têm armado grande confusão neste campeonato). Não só por causa do orgulho nacionalista e da quantidade de bebida ingerida, mas, sobretudo, por deduzir que a mobilidade social (não encontrei indicadores para a Rússia) deve ser para esquecer.
Posto isto, consegui que o meu filho ficasse com melhor opinião em relação às minhas capacidades sociológicas. Mas, infelizmente, constatei, três ou quatro páginas depois, que Portugal – que não aparecia no primeiro gráfico – ainda tinha menos mobilidade social do que o Reino Unido. Os indicadores dos dois gráficos não eram bem comparáveis; e eu já sabia que Portugal é dos países da Europa onde a escolaridade dos pais mais determina a escolaridade dos filhos (por outras palavras: tiveste azar ao nascer, agora aguenta-te). Porém, era óbvio que a minha teoria tinha pés de barro. É que, de facto, os portugueses, apesar da fraca mobilidade social, não são violentos. Se calhar, têm menos fervor nacionalista. E cheira-me que, apesar de tudo, bebem muito menos do que os ingleses ou os russos. Mas tive de reconhecer que a variável «mobilidade social» acabara de perder importância explicativa. Só que eu já não ia a tempo de elaborar uma nova teoria. E o meu filho estava orgulhoso do pai. Por isso, não lhe disse nada.