Num encontro que tardou após anos de ausência, como não podia deixar de ser entre amigos e ex-colegas, relembrámos a nossa velha redação do jornal Correio dos Açores, em Ponta Delgada, e não vacilei um segundo em convidá-lo a apresentar o meu segundo livro, Dos Vulcões ao Desterro, incumbência que Tomás Quental gentilmente aceitou, acabando por apresentar também a primeira obra nas FNACs e na Casa dos Açores. Daí em diante, os contactos multiplicaram-se, são permanentes e naturalmente prosseguirão.
Um belo dia, sou obsequiado com um livrinho de edição reduzida. Sim, um livrinho, porque quase de bolso. Uma prenda que Tomás Quental quis ofertar à sua própria memória e à de todos nós – jamais conheci alguém com memória tão prodigiosa, a não ser seu tio, o já falecido historiador professor Luciano de Resende Mota Vieira.
Tão pequenino é o livro quão rico é o seu conteúdo. (Con)textos açorianos é um sucedâneo de histórias contadas com um realismo às vezes chocante, onde cada palavra é um passo e as frases são caminhadas a transbordar autenticidade, onde as imagens das casas, das árvores, dos intervenientes e suas alcunhas, os cheiros, as graças ditas por quem tão bem sabe contar, nos surgem como quadros habilidosamente desenhados, como se tudo aquilo que lemos se tivesse já passado nas nossas vidas, mesmo embora estejamos a lê-lo pela primeira vez. Quental, na sua escrita, como que descobre o que o leitor quer que ele escreva e, surpreendentemente, vai conseguindo entrar-nos na mente com a mestria dos melhores.
O jornalista Santos Narciso, prefaciador do livro, considera com propriedade estarmos “perante páginas de amor à Terra que merecem ser lidas e sentidas. Cada ângulo novo e cada visão diferente sobre acontecimentos, pessoas e lugares da nossa terra são como que pedras fundamentais para a construção da nossa identidade”.
Página a página, vamos deparando com histórias inesperadas como as ligadas aos jornalistas que Quental denomina de os “últimos patriarcas do Diário dos Açores”, com incursões por diferentes espaços, como a narração do passeio pelo belo jardim José do Canto, em Ponta Delgada, onde diz “Parece que ainda ouço o barulho das altas ramagens agitadas pelo vento ou o canto dos pássaros. É uma referência da minha infância”. Conta-nos, por exemplo, a história de D. Maria da Conceição Serpa, a “senhora das sementes”, que faleceu com a idade de 105 anos e que “importava sementes, bolbos, plantas e arbustos, quer do continente português, quer do estrangeiro, por sua iniciativa ou a pedido de clientes, numa disponibilidade sem limites …” e relembra que a Casa das Sementes Serpa foi, durante muitos anos, para além de um estabelecimento comercial, um local de amizade”.
Neste livrinho o jornalista invoca o Ferreira, dos barcos à vela, mais tarde conhecido pelo Ferreira das “Ilhas de Bruma”. “Durante muitos anos, eu só o conhecia por Ferreira, desconhecia o seu nome completo. Era o Ferreira do Clube Naval. Só mais tarde é que soube que o Ferreira era o talentoso músico e compositor Manuel Medeiros Ferreira, autor, nomeadamente, da célebre canção “Ilhas de Bruma!”, o hino não institucional da açorianidade, como é geralmente considerado.”
Tomás Quental aproveita ainda esta pequena obra para nos fazer passar o seu descontentamento por ter acabado o fabrico artesanal de vimes à porta na Rua do Mercado, pelo “espaço de convívio cultural que desapareceu” – a livraria O Gil – e pelo betão que envolveu a típica Calheta, limítrofe ao centro da cidade de Ponta Delgada, com construções que vêm gerando polémica, descrevendo assim a freguesia tradicional de outrora: “o mar a beijar a terra ali aos nossos pés, o cheiro a maresia, os barcos a saírem e a entrarem geralmente com muito peixe, os pescadores que ali labutavam e que amavam toda aquela envolvência, que incluía as ruas mais próximas onde moravam, com as suas casas, pequenas mercearias, as tradicionais “barracas” de venda de fruta e legumes e algumas tabernas, destacando-se o “Mané Cigano”.
É meu preferido o curioso episódio, e até ternurento, que envolve uma árvore pequena, um rebento que Tomás decerto salvou, quando era ainda jovem. Era uma araucária filha de outra araucária gigantesca na praia pequena do Pópulo. Arrancou-a e transplantou-a para outro sítio. Hoje, de grande porte, a então arvorezinha empresta muita beleza à entrada da Fábrica do Açúcar, em Ponta Delgada. É, por isso, a sua árvore de estimação.
(Con)textos açorianos é um livro que, num sucedâneo de páginas de nostalgia, nos enche as medidas, perseguindo o desígnio de reabilitar memórias da velha ilha de São Miguel, de que muitas saudades temos.
Guardo-o na estante dos melhores.