D.R.
Após 8500 quilómetros de voo desde Lisboa, a uma velocidade de 900 quilómetros por hora, e de quase 10 horas de céu percorrido, fui encontrar, na comunidade açoriana mais longínqua dos Açores, residindo em Santa Catarina, no sul do Brasil, a mais forte tradição religiosa e cultural açoriana, estruturada, coesa no tempo, a festa em honra do Divino Espírito Santo. Como vão longe as tradições!
Os emigrantes açorianos deixaram os Açores em 1748, tempos do reinado de D. João V, para enfrentar três meses de mar e as conhecidas fúrias atlânticas, mas as vicissitudes de então importam hoje menos que o cumprimento do destino e a memória da tradição, que também viajou com eles, se instalou e vingou nessas longínquas terras do país irmão. Mais tarde, influenciaram outras zonas do Brasil com os usos, costumes e tradições que levaram na bagagem e no coração, como o é o culto ao Divino Espírito Santo.
Este culto, que remonta ao século XIV, é uma das mais antigas manifestações do catolicismo popular português, achando-se que teve origem, em 1320, num convento franciscano, em Alenquer. Recebeu, então, a proteção da Rainha Santa Isabel, a rainha santa, como se tornou conhecida, que prometeu ao Divino Espírito Santo espalhar a fé pelo mundo caso a segunda figura da Santíssima Trindade intercedesse junto da sua família pondo fim a desentendimentos entre o seu marido, o Rei D. Dinis, e o seu filho legítimo, D. Afonso, por razões que se prendiam com a sucessão. D. Dinis teimava em entregar a coroa portuguesa, após a sua morte, a um filho ilegítimo, D. Afonso Sanches, mas o filho Afonso reclamava o trono para si.
A partir daí, uma coroa encimada por uma pomba, símbolo do Espírito Santo, começou a viajar em peregrinação por todo o território português de aquém e de além-mar, levada pelos descobridores portugueses. A tradição acabou quase por morrer no continente português, todavia persistiu com a maior pujança no arquipélago dos Açores. Os festejos acontecem cinquenta dias após a Páscoa, enaltecendo o Dia de Pentecostes, quando, segundo reza a história católica, o Espírito Santo desceu sobre a Virgem Maria e os Apóstolos.
Nos Açores, mais fortemente na ilha Terceira, vamos encontrar os denominados Impérios do Divino Espírito Santo, que são pequenas construções com bonitas fachadas erigidas para o culto pelas irmandades do Divino. E há missas de coroação seguidas de procissões e de almoços da Santíssima Trindade, onde, em mesas estendidas ao comprido, o povo se senta lado a lado e come as tradicionais sopas em confraternizações alegres e sãs.
Todos os anos é nomeado um Imperador, figura principal dos festejos, que organiza a coroação e se vê auxiliado por populares com posses, como são alguns lavradores, que engordam e doam os bezerros cuja carne é utilizada nas sopas e distribuída, juntamente com os bodos, porta a porta, pela irmandade. O Imperador, que também financia a festa, é, em geral, pessoa respeitada pela comunidade e benquista do povoado.
A coroa, o cetro e a orbe do Espírito Santo que repousam todo o ano nos Impérios, passam nesta altura para a casa do imperador, ficando, à sua guarda e da sua família, sobre um altar improvisado decorado com flores naturais ou de papel, em frente ao qual familiares, amigos e populares rezam diariamente o terço. A casa imperial tem uma bandeira hasteada junto à porta a assinalar a presença da divindade.
Hoje, o culto ao Divino Espírito Santo é, nos Açores, no Brasil, nos Estados Unidos da América e no Canadá, locais privilegiados de emigração dos ilhéus, um traço comum da açorianidade.
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